domingo, 22 de outubro de 2017

Naufragada



Não sei se você vai entender minha letra. Escrevo com dificuldade, minha mão direita treme muito, às vezes esqueço as palavras. Pedi à enfermeira um dicionário, mas de nada serve quando esse branco toma conta do meu cérebro, aos poucos eu estou perdendo a capacidade de dizer. Devia ter falado quando ainda havia fala, paciência. Espero que me reste tempo suficiente para eu terminar essa carta que esboço há meses, tem dias que não consigo escrever nada.
Queria dizer que voltei por vocês. Todas as vezes, eu voltei por vocês. Não espero que me perdoem por isso, acho que nunca poderiam entender o que eu fui e o que me tornei, vocês nunca poderiam saber o que se passava aqui dentro, nessa cabeça e nesse corpo febris que finalmente falham, que agora me privam de uma velhice digna, do acerto de contas, dos netos que não conheci nem conhecerei. Este é o exílio que mereci.
Os dias aqui são todos brancos, como as paredes desse quarto. Na mesa ao lado da cama tem uma foto de vocês duas, vestidos vermelhos iguais e longas tranças, de mãos dadas com seu pai. Fui eu quem tirou essa foto, logo depois que voltei. Seu pai tem os olhos cansados. Ele era um homem bom e cansado. A foto está desbotada, mas o vermelho dos vestidos não. Vocês eram lindas, tão diferentes uma da outra. A Lina sempre muito séria, com raiva-já sabia e nunca me perdoou. Ana, tão pequenina e ainda inocente do crime de que foi cúmplice involuntária.
Eu só amei um homem na vida, e não foi esse que me olha na fotografia, esse homem correto e cansado, que sempre me recebeu de volta. Não, ele não foi o amor da minha vida, o pai de vocês. Deveria ter sido, se as coisas fossem como eram para ser, nunca foram, ele tinha o melhor tipo de amor. Acho que hoje vocês já devem saber que existem amores bons e amores ruins. Eu escolhi o amor ruim. 
Seu pai viajava muito, a trabalho, isso não é desculpa- teria acontecido de qualquer jeito. Desde sempre tive paixões que me queimavam, um buraco que não conseguia tapar com a maternidade, com as tarefas de casa, me perdia nos livros e escrevia poemas, fazia longos passeios pela ruas de pedra, sofria de solidão. Mesmo quando meu marido estava em casa, até mais quando estava. Odiava a cidade pequena e cinza que me confinava, o cais do porto e sua promessa de terras distantes, a sujeira das calçadas. Aquela gente pequena.
Quando fui embora, você tinha três anos, Ana. Nunca falei para nenhuma das duas onde estive, fui para longe, atravessei o oceano. Fui para muito longe. Tentei buscar vocês muitas vezes, seu pai impediu. Durante um ano e um mês, fui a mulher mais feliz e a mais infeliz do mundo e no fim, sem saída, eu voltei. Por vocês.
Seu pai aceitou tudo, os outros amantes, homens em quem eu buscava alívio e dor, as bebedeiras, os abortos- filhos não planejados, não havia mais espaço: sempre foram só vocês. Ele era um homem bom, tinha esse amor cansado, acomodado, que eu não merecia e não desejava. Vocês sabem, fiquei com ele até o fim e não poderia ter sido diferente. Mas eu nunca estive ali.
Hoje que já não tenho voz, e que as palavras me fogem, escrevo antes que seja tarde, só que é sempre tarde. Anoitece, e eu queria que vocês soubessem: antes de ser mãe, fui mulher. Fui muito mais mulher do que mãe. Doente, intensa, atormentada pelos vícios de uma paixão e de um segredo que devorou meu corpo, depois meu espírito, finalmente explodiu minha cabeça. 
Voltei por vocês, mas não para vocês. Já era tarde demais sem que eu soubesse. 
Minha mão treme, tudo falha, estou de partida. Estou partida há muito tempo. 
Mas antes de ir, Ana, preciso te dar um nome e um endereço. É de longe, de um lugar distante.
De onde nunca retornei de verdade.

Daniela Altmayer
( Exercício de texto confessional - objetivo não alcançado- para a oficina de escrita criativa)

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