domingo, 17 de dezembro de 2017

A mulher e o gato


A mesma ressaca, no espelho o mesmo rosto com a barba por fazer, a mesma desordem de todo dia. O café instantâneo, morno. A geladeira e o estômago vazios, a pia cheia de louça, o computador esperando. Os buracos na estante, o armário desocupado ao meio, a garrafa de uísque no fim. A camiseta branca encardida, uma cueca virada, o caos da área de serviço: nada parecia importante nas pilhas de coisas adiadas para dia algum.
Faz uma semana que ele não sai de casa. Não lembra do último banho. Anteontem, talvez. Do artigo para o jornal de domingo, nem uma linha. Do livro, só um parágrafo: o último. A palavra fim. Consulta o relógio na parede, já são  quase dez horas- pelas cortinas cerradas um raio de sol se insinua na sala, fazendo dançar a poeira do chão.
Nada naquela manhã anuncia que vai ser diferente de qualquer outro dia.
Olha pela janela a cidade acordada, suspenso na névoa de seus pensamentos inúteis, fecha bem a cortina e acende um cigarro. Nesse instante, o interfone toca:
- Sou eu, abre.
Não pensa em perguntar de quem é a voz desconhecida de mulher. Obedece. Minutos depois ela entra. Uma mulher alta, de chapéu, toda vestida de preto. Traz um gato no colo, preto também.
- Lembra de mim?
Tem a voz rouca, lábios muito vermelhos. Não espera ele responder, e solta o animal que foge para baixo do sofá, assustado.
-Volto às cinco.
Sai fechando e porta com delicadeza, e deixa para trás uma bolsa de couro, o gato, e o rastro de um perfume forte, que toma conta da sala fechada há vários dias.
Ele espirra, tem alergia a gatos. Talvez seja o perfume. Olha em volta, procurando o bichano- acende uma luz na sala escura. O bicho sumiu, não está em lugar algum, não que ele possa ver.
Suspira e senta na frente do computador, olha o celular que pisca e vibra.
Tem que comprar comida, acende outro cigarro. Precisa comprar cigarro também. Esse é o último. E uísque. Decide-se. Vai no quarto, abre o armário para pegar a bermuda e o chinelo, o gato salta do alto de uma prateleira, e some novamente em direção à sala.  Uma calcinha cor-de-rosa se enrola nos seus pés, deve ter caído lá de cima. Examina com cuidado a peça pequena e cheia de rendas: não lembra dessa calcinha minúscula. Cheira com força, fungando, espirra e joga de volta para o fundo do armário. Merda. Desiste de sair e pede uma pizza, cerveja e cigarro pelo telefone, uma garrafa de água também. Examina a carteira: o dinheiro está acabando, precisa ir ao banco.
Volta para o computador, liga a TV sem som na sala, e fica mudando de canal. Ouve um miado. O gato deve estar com sede. Abre a torneira da cozinha, e o animal aparece, desconfiado. Tem um olho verde e outro castanho, bebe uns goles, depois roça suas pernas, agradecido, e desaparece. Ele lembra de fechar a única janela aberta, a do banheiro: mora no sétimo andar.
Não vê mais o gato a tarde inteira.
Toca o celular, número desconhecido- deve ser da editora. Atende. A mesma voz rouca avisa que vai se atrasar um pouco e desliga.
Faz calor no apartamento. Decide tomar um banho e fazer a barba, não tem mais roupa limpa, veste uma camisa social por cima da bermuda de sarja. E espera.
Ela chega sem avisar às 17h30, mais perfumada e com os lábios mais vermelhos do que antes, ainda de preto. O gato corre a se aninhar em seus braços, o chapéu se desloca um pouco e ele consegue ver seus olhos: um castanho, outro verde.
Ela pisca, pega a sacola de couro e se despede:
- Volto amanhã, no mesmo horário.
Ele senta em frente ao computador, acende um cigarro, depois outro. A sala tem o cheiro adocicado dela.
Passa a noite inteira escrevendo.

Daniela Altmayer
(exercício para a oficina de escrita, misturar conto de fadas/ fábula num texto concreto)

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