quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Vinho doce



No álbum velho as fotos estão desbotadas. Mal reconheço a menina de dezoito anos que vivia sua aventura de estreia longe de casa.
De todas as viagens que fiz, guardo nítida a lembrança da primeira vez em que estive na terra da minha mãe, ainda no século passado. Desembarquei sozinha na Inglaterra, em abril de 1988, para estudar inglês durante três meses.
Fiquei em uma cidade chamada Bath, tem esse nome devido aos antigos banhos romanos. Morava na periferia, hospedada com um casal que me parecia velho então, mas que, muito provavelmente, tinha a idade que tenho hoje. Ele, Mick, era funcionário da prefeitura, Margaret era enfermeira. Ele achava minhas pernas engraçadas, me apelidou de Funny legs, vivia contando piadas. Ela era mais séria. Mantive contato com eles através de cartas por longo período após meu retorno. Dez anos depois, voltei para uma visita.
A casa era simples, jantávamos às 17 horas, e depois tomávamos chá, assistindo programas bobos na televisão, comendo os melhores biscoitos com cobertura de chocolate que já provei na vida. 
A escola onde eu estudava era perto, dava para ir a pé. Fiz amizade com duas brasileiras, dois italianos- um dos quais namorei, um suíço e um árabe. Para se chegar ao centro da cidade, era preciso atravessar um parque muito verde, onde também fazíamos piquenique e jogávamos frisbee. De vez em quando a gente fumava um haxixe, trazido pelo árabe, o Ali. Naquele quase verão, o sol ia alto até perto das dez da noite.
Uma ou duas vezes por semana, o programa era ir até um pub local, onde eu pedia sempre a mesma coisa: a glass of sweet white wine, please. Não sei como não me engasgava nas palavras, a sorte é que, sendo o dinheiro curto e contado, eu só tomava uma taça mesmo. 
De vez em quando íamos a Londres de trem. Aprendi os mapas do metrô, visitei catedrais e museus, morria de inveja das japonesas sempre cheias de sacolas de compras, em contraste com minha pseudo miséria.
Detestava a comida da escola e em geral só comia pão, biscoitos e Mars bars- minha grande descoberta daquele tempo. Engordei sete quilos, ao final da viagem minhas calças já não fechavam. Falando em roupas, sobrevivi três meses com meia dúzia de camisetas, dois jeans de cintura alta, três blusas de lã e um casaco.Outra coisa impensável, hoje em dia.
Comprei um walkman que tocava repetidamente duas fitas-cassete: uma do The Police, a outra dos Pet Shop Boys. Quando ia a Londres, entrava na Virgin`s e enlouquecia. Ficava horas ali ouvindo discos. Hospedávamos-nos em Bed and Breakfasts baratos, o banheiro em geral ficava no corredor. Chuveiro era luxo raro naquele tempo, as banheiras tinham crostas de sujeira.
Eu nunca fui tão feliz. E o melhor de tudo: eu era feliz e sabia. 
Sabia que aquilo era único e irrecuperável, que eu nunca mais teria aquela idade, aquela experiência, aquele lugar no mundo. Pensava nisso toda manhã, caminhando para a escola, e ao longo dos dias sempre tão longos. Não esquecia, por um instante sequer, a sorte que tinha, e vivia.
A menina bochechuda que me sorri hoje, na foto desbotada, é até parecida comigo. Ao mesmo tempo, me parece uma estranha. Quando lembro daquela época, penso em como ela era mais sábia. Eu era.
Porque ela tinha a inteireza e a consciência que eu deveria ter até hoje (e não tenho): a de que, não importa o lugar, nem o tempo, a vida é sempre presente.
E só no presente.

Daniela Altmayer
( texto "memorialístico" para a oficina de escrita)

Meus pais ingleses e os brasileiros, em visita.


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