sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Outra




Olha, é para você esse texto, sim. Pode ler. Para você que pensa que o mundo gira ao seu redor.
(Ou seja, quase todos, de nós. De vocês.)
Quando você diz que me ama, você ama o que em mim reflete você, Narciso.
Você ama a imagem que você criou na sua cabeça, e ela não sou eu, pode ter certeza. Porque você não me conhece, sabe? Você não entende nada de mim.
Não sabe dos desertos que atravessei, das lágrimas que engoli, do meu coração partido.
Porque quando eu te contei, você não prestou atenção. Enquanto eu falava, você só esperava o tempo certo para dar a sua opinião, aquela que já veio de casa com você. Opinião que eu sequer pedi. Que não me define. Não me defina, por favor.
Você não sabe das minhas pequenas vitórias, das tantas derrotas, do exame que fiz mês passado. Do medo que eu tenho de trovão, e de morrer, e de que morram. Dos tantos medos que tenho, das grandes coragens que muito me custaram.
Você não perguntou, e eu não disse.
Do texto que escrevi, da chuva que não parou, do frio que eu senti. Do filme que assisti, da besteira que falei, das saudades que vivi.
Você não sabe da paixão que escondi, do ônibus que perdi, da gripe que me derrubou. Do filho que cresceu, do tempo que voou. De mim, que cresci.
Do inferno que é, tantas vezes, viver. Da delícia.
Você não sabe de nada, não se importa. Não cuida de mim, nunca cuidou. Eu cuido de mim, Narciso. Você cuida de si. Sempre foi isso, cada um por si.
Você diz sentir falta, mas falta de quê? De mim?
Não. De alguém que você projetou no espelho da tua vontade. Da imagem congelada de um antes.
Não sou eu ali, sinto muito. Eu sou outra.
Você sente falta de palavras e tempos passados, perdidos. Que não serão devolvidos. Nunca são.
Não pode chegar assim, de repente, esperar a mesa posta, a cama pronta, e um lugar na janela. Uma outra de mim, que te sirva. Não tem.
Eu não sirvo, eu nem presto. Eu não sou a outra. Sou à toa, sou sozinha, cheia de erro e defeito. Mas sou minha.
Você me chama para jantar, depois esquece. Oferece migalhas, sem saber o tamanho da fome que tenho. Tenta roubar minha solidão, eu não dou. Minha solidão é valiosa demais para ser roubada em troca de um quase nada.
Você diz que ama, mas abandona. Você é machista, eu sou o contrário. Assumida. Eu sou livre, você apegado. Você quer sexo fácil. Eu sou complicada.
Mas tudo bem, se fosse só isso. Um tesão honesto tem lá seu valor. Ainda é melhor do que muito amor inventado. Uma "mentira que a sua vaidade quer", isso não é amor. Não para mim.
Porque amor é tocar o mundo do outro com cuidado. Com permissão, com respeito. Para amar, tem que ser capaz de sair de si mesmo. Tem que ser capaz de admirar. Saber que existe um outro, que não é invisível. Amar é ouvir, e ser ouvido. Olhar, e ser olhado. Compreender, e ser compreendido. É coisa para dois, nunca trabalho de um só.
"Eu te amo." Que nada...
Nem você a mim, nem eu a você. Nem ninguém, desse jeito.
Narciso, o que você ama é o que você pensa, e o que você acha que quer. Você pensa que ama. Imagina. Mas não.
Fruto da sua ilusão, você cria o que melhor te convém. À sua imagem, e semelhança.
Pálidos reflexos que nunca serão.
Não são. E não servem.
Não sou eu ali. Olha bem. É só você, no lago.
Não sou eu, nem eu sou de ninguém. Eu sou outra.
Mas, acima de tudo, eu não sou a outra. Não de você.
E não, não com você.


Dani Altmayer


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