sábado, 12 de dezembro de 2015

Sorrisos raros


"Ela lhe perguntou num daqueles dias se era verdade, como diziam as canções, que o amor tudo podia.
- É verdade- respondeu ele- mas será melhor não acreditares."
( Gabriel Garcia Marquez)


O trem seguia quase vazio, naquele horário. Estávamos sentados frente a frente, cada um com seu livro no colo, abraçados nos próprios pensamentos. No início da viagem não íamos a sós na cabine. Havia essa mulher gorda, com ares de cansada, que tinha em seus braços um bebê franzino e desdentado. Ela parecia ainda mais triste do que eu, com seus peitos enormes, vazando na blusa de algodão. Em certo momento, o cheiro inconfundível fez com que nos entreolhássemos, num sorriso constrangido, e a mulher saiu, em busca de um lugar para trocar fraldas, além daquele pequeno cubículo abafado. Ela não voltou para a cabine, e suspirei aliviada, pronta para seguir minha leitura, em paz. Ler é o meu refúgio favorito. Depois de tanto tempo fora de casa, eu só não queria pensar no que me esperava. Estava tão entretida que custei a perceber o olhar dele grudado em mim.
Embarcáramos na mesma plataforma, e eu já havia reparado nele antes, não tanto por suas roupas esquisitas e seu ar distraído, mais porque levava uma pilha de livros velhos, um exagero para uma viagem de apenas algumas horas. Gostei quando ele sentou no mesmo compartimento que eu. Gosto de gente que carrega livros.
Ele me encarava, o livro puído agora fechado sobre as pernas. Tinha os olhos apertados, meio vesgos, de um jeito charmoso. Falou, como se tivesse descoberto ouro:
- "É a vida, mais que a morte, que não tem limites."
Encantada por ele ter citado meu autor preferido, sorri em resposta. Ele guardou os livros na mochila rasgada, e sentou ao meu lado, dizendo de um jeito esquisito:
- Amor assim existe?
Dei de ombros, rindo com uma vontade idiota de chorar.
Ele não perguntou o meu nome, antes de me beijar. Eu nunca soube o nome dele, depois.
Ajoelhou na minha frente e abriu minhas pernas, se aninhando entre elas. Tocou o meu corpo com o cuidado de quem manuseia um livro antigo, folha por folha. As mãos, secas e ásperas, me seguraram as coxas com força e delicadeza, ainda por cima do vestido azul. E então subiram, como duas serpentes, farejando a minha pele fria. A minha urgência não era nada para ele. Com calma, ergueu minha perna e me tirou o ar. Antes que eu parasse de gemer, saiu da cabine para sempre.
Ele desceu uma estação antes da minha. A mulher gorda com o bebê, também. Ele não percebeu meu sorriso na janela. O trem partiu e ele se dissolveu em meio à nuvem de saciedade.
Uma hora adiante, Carlos e Pedrinho me esperavam na plataforma. Ganhei uma rosa.
-Tem presente, mamãe?"
-Você parece cansada, querida. Fez boa viagem?
Nunca mais o vi.

Dani Altmayer








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