sexta-feira, 31 de maio de 2013

Só Comigo


                        

                            
A vida da gente é engraçada. É cheia de paradoxos.

Quando eu era criança minha mãe brigava muito comigo. Ela dizia que eu era mandona. Falava que ser mandona era uma coisa muito feia. Argumentava a favor da livre escolha. Dava discurso sobre direitos individuais. Discorria, por horas, sobre como cada um tem direito de fazer o que bem entende. Defendia meus amigos das garras de uma pequena ditadora. Eu não concordava com ela.

Era eu quem organizava as brincadeiras. Decidia quem ficava em qual time. Eu era a recreacionista das minhas própria festas. A diretora da minha vida. E a atriz principal. Os outros eram coadjuvantes no meu filme. Cada um com um papel. Bem definido. Por mim. Pensando bem, era a diretora da vida deles, também.

Conforme fui crescendo, e conforme cresciam as broncas e castigos da minha mãe, fui aprendendo a disfarçar. Continuava mandona, ou assim pensava, mas me tornei uma mandona discreta. Não gritava mais com ninguém.  Era extremamente sutil.  Mas, ainda era eu quem organizava tudo, desde festas até trabalhos em grupo. Nestes, aliás, eu ficava com a maior parte, ou com a parte mais difícil, ou com todas as partes. Afinal, eu sabia como fazer, sempre.A última palavra tinha que ser minha. Assim diziam. Assim eu pensava.

Até a chegada da Márcia. Foi quando acabou minha ilusão. A Márcia entrou na minha vida há 12 anos. Morena, alta, grandona. Um sorriso lindo. Veio para cuidar do meu (então) bebê e foi ficando. Trabalha lá em casa até hoje. A Márcia é uma líder nata.  É um misto de administradora, cozinheira, faxineira, amiga e secretária. Uma faz tudo. É ela quem chama o hidráulico, quem supervisiona a pintura, quem leva meu filho ao dentista, quem marca unhas para mim. É ela quem pede orçamentos, pechincha, faz listas. Foi ela quem tirou as fraldas do meu filho. Em três dias. Isso depois de eu ter tentado durante o mês de férias inteiro. É ela quem cozinha, e põe sal de mais. Ou de menos. Porque ela não prova comida. Não adianta falar. O almoço é sempre uma surpresa, para o bem ou para o mal. É ela quem leva o cachorro para tomar banho, quem põe limites na gata, quem faz meu filho guardar os tênis. É ela quem mantém a ordem.

Existe uma casa com a Márcia, e outra casa sem a Márcia. Nos finais de semana, meu apartamento fica quase irreconhecível. Tem gata pendurada na cortina, cachorro fazendo xixi no tapete do banheiro, sapatos até na geladeira. Vira bagunça mesmo. Mas ela não admite. Não toma os méritos para si. Ela não acha que é ela. Ela sempre diz que sou eu. Há anos ouço a seguinte frase: “é só porque você chegou”. Ou, “é só com você que isso acontece.” Na opinião dela, quando eu chego em casa, eu subverto a ordem.

A gata corre para a sala, no instante em que abro a porta da rua. Ela sabe que a sala é proibida. Sabe que afiar as unhas no sofá da sala é proibido. Mas ela só sabe com a Márcia. Quando eu chego, e porque eu chego, ela esquece. Meu filho sabe que comer salada é importante. Conhece o valor nutricional do brócolis, da acelga, do agrião e do quiabo. Mas só sabe com a Márcia. Quando eu venho almoçar em casa, ele esquece. Só lembra o sorvete com cobertura de chocolate. O cachorro sabe que a lata de lixo da cozinha está interditada para seu focinho peludo. Mas só sabe com a Márcia. Todo domingo ele esquece. Todo domingo eu tenho uma surpresa cheirosa bem no meio da cozinha. Todo domingo, só comigo acontece.

A Márcia tem a mistura certa de doçura e autoridade. Um amigo a chamava, carinhosamente, de Nazi. Ela, ao contrário de mim, nunca grita. Nunca levanta a voz. Nunca se descabela, e nunca, nunquinha, estraga as unhas. Ela só precisa pedir uma vez. Todo mundo obedece. Inclusive eu. Às vezes ela não precisa nem falar.Para a Márcia, basta um olhar. Daqueles.

E eu? Eu descobri que não mando nada. Descobri que tudo acontece quando eu chego. Tudo. Gostaria de poder culpar a minha mãe. É sempre mais óbvio culpar a mãe. Culpar alguém. Adoraria dizer que foi ela quem minou minha capacidade de liderança. Que, por causa dela, eu desaprendi a mandar. Virei submissa. Mas não posso. Não é culpa dela. Nem da Márcia. A Márcia só me mostrou que nem tudo o que parece é. Com ela, finalmente pude compreender como funciona. Entendi: querer não é poder. E nunca vai ser.

Autoridade. Ou você nasce com, ou esquece. Nunca vai ter.

Dani Altmayer

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