domingo, 19 de maio de 2013

O Mesmo Sol

Tenho as coxas grossas. Meu pai sempre me dizia: "Lúcia, mulher de coxa grossa tem vontade forte. Sabe o que quer". Tenho as coxas grossas, e o queixo pontudo. Voluntarioso. Mas não tenho vontade nenhuma, há muito tempo. Não sei mais o que quero. Ou melhor, sei, hoje eu queria ser de novo aquela menina de pernas roliças, aninhada no colo do pai, ouvindo suas histórias de marinheiro. Sentindo aquele cheiro de tabaco e cachaça, a voz rouca, me falando de como eu era bonita, e como tudo era possível, e inventando estas frases como se fosse verdade. Mulher de perna grossa tem vontade forte. Eu sempre acreditava nele, mesmo quando sabia que ele estava mentindo. Ele mentia bonito para eu acreditar.
Sentada na cama deste hotel insìpido, minha postura ereta de ex bailarina não combina com o meu estado de espírito. Tem coisa mais estranha do que hábito? O coque, por exemplo, não é vaidade, é costume. A camisola não tem rendas, ou laços, que antes eu gostava. Não preciso mais deles. É simples,e seca, como eu sou, agora. O sol entra pela janela aberta, posso sentir seu calor no meu corpo, mas não posso vê-lo. Apenas adivinho. Não vejo também a paisagem que se descortina à minha frente, suburbana e proletária, como nunca gostei. Mais adiante fica a fábrica em que Henrique veio trabalhar, ele já me levou lá, uma ou duas vezes. Não conheço a cidade, nunca a vi, mas não gosto dela. Não confio em seus cheiros, e seus barulhos. Fumaça e buzina, da fábrica e dos carros. Não confio em cidade que não tem canto de passarinho. Imagino um lugar cinza e feio, e velho. Como eu devo estar. Cinza e velha. Um cidade desbotada, sem contraste, sem luz e sem sombra. Sem árvores. Não que me interesse muito o mundo lá fora, aliás. Só posso imaginá-lo.
Cegueira psicológica. Foi o que diagnosticaram os médicos. Os melhores especialistas a quem meu marido me submeteu. Exames, e mais exames. Remédios e injeções. Peregrinacões, a consultórios e igrejas. Em vão. Finalmente, concluiram o que eu já sabia: não tem nada de errado com os meus olhos. Cegueira conversiva. "La belle indifference", ouvi de alguns. Em francês sempre soa melhor. Mas, quem está indiferente aqui? Eles pensam que eu não me importo. Eu me importo sim, eles é que não sabem. Eles não sabem nada. Eu não me importo de não ver, isso é verdade. Facilita muito. Sabe aquele dito que fala, melhor ouvir isso do que ser surdo? Ah, eu acho que é melhor ser cega do que ver certas coisas. Isso é o que eu acho. Já vi muita coisa na vida. Não parei de ver porque eu quis, isso as pessoas não entendem, também. Não acordei, num belo dia, e, simplesmente decidi: cansei, não quero mais enxergar. Não foi nada disso, nada intencional. Só aconteceu, e eu aceitei. O Henrique não aceita, ninguém aceita, mas eu não me incomodo. Facilita assim, sabe, simplifica. Este quarto, por exemplo, só tem uma cama, um armário, e o banheiro. Precisa mais do que isso? Tudo sempre no mesmo lugar, previsível e organizado. Um dia depois do outro, sem surpresas. Já tive muita surpresa, surpresas demais. O sol na janela, é o mesmo, aqui ou em Paris. Sabe, tanto faz, e isso não é ruim, eles não percebem. É bom. O dia só existe para esperar a noite chegar. Os dias são sempre iguais. As noites não, infelizmente. À noite, quando fecho os olhos, consigo enxergar, algumas vezes. Mas só vejo de olhos bem fechados. Também tenho sonhos que não consigo controlar. Às vezes sonho com eles. Quando grito bem alto, Henrique me dá uma pílula, que me acalma e me cega, novamente. Eu acho que ele também me prefere assim, cega. É mais fácil. Quando digo que me importo, é porque me importo com ele. Um pouco.Ele também me irrita, um pouco, Não sou indiferente. Sou grata pela sua paciência. Ele sempre chega tarde, cansado. Não me pede nada, eu não dou nada. Não tenho nada para dar. Ele quis ficar, não me deixou partir. A escolha foi dele, o problema é dele. Não sinto culpa, por isso não. Só pelo resto. Eu não vejo ninguém, tanto faz agora. Os médicos disseram que foi o trauma. Aconteceu tanto tempo depois. O que eles sabem? Não sabem nada. Nem eu. Sei do dia, do sol na janela, do barulho da rua, do cheiro de borracha e asfalto. Sei da noite que sucede o dia, do dia que sucede a noite, que arrasta o tempo, em semanas, meses, e anos. Isso é o que sei. Uma longa espera, um intervalo entre o nada e o fim. A liberdade. Cada vez mais próxima, posso sentir.
Já desejei muito, tive muitas vontades, fortes, como as minhas coxas grossas. Sempre decidi tudo, e fiz tudo errado. Já tive muitas escolhas, e o que elas me deixaram? Um quarto de hotel. Um marido que não amo. Uma cegueira.Psicológica, ainda por cima. A saudade do colo de um marinheiro que mentiu para mim, e se foi, cedo demais. Outras lembranças que quero apagar. Outras saudades.
 O Henrique chega cedo, hoje.Quer ver outro médico, na capital, já marcou, há meses, a tal consulta. Ele não consegue desistir. Eu sim, porque eu sei. Sei que meus dois olhos não tem nada de errado. Como eu, eles não tem mais nada. Só isso.

2 comentários: