domingo, 11 de junho de 2023

Finalmente


Isso de morrer não estava nos meus planos.

Espero que o caixão esteja fechado, não acho necessidade de caixão aberto, ninguém fica bonito depois de morto, nunca vi alguém falando, estava tão bonita, só falam que estava em paz, que descansou, como se soubessem o que vem depois, ninguém fala da beleza do morto, da morta, mesmo com o capricho dos maquiadores, da funerária, não há beleza que resista ao cessar do fluxo sanguíneo, não há blush que dê conta. Também nunca ouvi dizer que, nossa, parecia triste-atormentada-infeliz-

preocupada, é sempre como se a morte fosse uma espécie de férias eternas, uma praia paradisíaca, uma rede na varanda, descansou, oras, as bobagens que as pessoas inventam para se consolar, viver é cansativo mas quase sempre é a melhor alternativa. Esperam da morte a libertação, uma epifania, e isso me parece superestimado, enquanto que a vida, pelo contrário, é cotidiano, piloto automático e favas contadas. Até não ser.

Tão jovem, 50 anos. Os velhos têm direito e, dependendo da idade, têm quase o dever de morrer. Nossa, viveu muito, dizem. Uma vida plena. Chegou longe. Como se soubessem. Cinquenta anos, cinquenta anos atrás, talvez não fosse o que é hoje, tão jovem. Hoje é sempre muito cedo para se morrer. Eu tenho cinquenta anos e não pretendo ir agora, não está em nenhum dos meus planos. 

Venho como amigo, nem isso, venho de curioso. Valéria. A menina mais bonita da oitava série, meu primeiro beijo, primeira punheta, primeiro coração partido. Anos sem saber dela. Até que teve uma festa, acho que deve fazer uns dez anos, um daqueles encontros marcados pelas redes sociais, todos na casa dos quarenta. 

Ela usava um vestido vermelho, o cabelão preso num rabo de cavalo, o sorriso de dentes agora parelhos e brancos, na época eu ainda estava casado e achei que poderia me apaixonar de novo pela Valéria, por aquele sorriso, aquela nuca, outro dia pensei em mandar mensagem, convidar para um vinho, pensei e não mandei, tinha tempo, sempre temos amanhãs, ontem veio a notícia no grupo do colégio, que a Valéria tinha morrido. Aos cinquenta anos você não espera receber esse tipo de notícia. 

Ficamos, eu e ela, com um vinho em aberto e tudo o que poderia ser, ainda que remotas fossem as chances, agora nunca saberei ao certo. A merda da morte é isso. Não saber.

O caixão está aberto, o corpo esguio, pequeno, coberto de flores miúdas e o rosto pálido maquiado parece o de uma boneca de cera, a cicatriz escondida pela echarpe rosada, a filha, chorando ao lado do corpo, é a cópia da mãe. Ela me diz, a voz rouca sem convicção: descansou.

Quero falar que sua mãe está bonita como sempre foi, e é próximo disso, uma boneca de cera de lábios pálidos, não seria mentira, para uma morta está bem, mas o que sai da minha boca é que sim, ela parece estar realmente em paz. Que merda.

 

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