quinta-feira, 27 de abril de 2023

Flamingos


 Aninha era a faxineira lá de casa, quando eu tinha uns 14, 15 anos. Ela costumava ir três dias na semana, segunda, quarta e sexta. Às vezes precisava ir no sábado também. Quando tinha alguma festa ou jantar importante.

Nessa época minha mãe não morava mais com a gente, e a Mila estava quase cega. Meu pai saía toda noite. Acho que já era alcóolatra, mas eu não percebia. Essas coisas às vezes levam tempo. Meu irmão estava estudando para o vestibular, e praticamente morava na casa da namorada.
Eu gostava de conversar com a Ana, uma menina morena, magrinha, pouco mais velha que eu. Na verdade, eu falava na maior parte do tempo, e ela só ouvia. Costumava segui-la pela casa, como a Mila fazia comigo quando eu era pequena.
Aninha usava um batom vermelho que não desbotava nunca, mesmo que ela comesse, lavasse o rosto, não sei de que marca era, eu não tinha nenhum batom e nunca perguntei.
Uma tarde a convidei para tomar banho de piscina. Era verão, e ela tinha esfregado o piso do deck, estava toda suada, o batom intacto. Eu tomava sol na boia de flamingo, e ela disse que não podia entrar na piscina, meu pai não ia gostar. Mas ele estava viajando, e fazia muito calor naquela tarde. Emprestei um biquini velho, que não servia mais. Eu era gorda nessa época, ao menos segundo meu irmão.
O biquini ficou bonito nela, apesar de um pouco grande. Ela não sabia nadar, e ficou o tempo todo segurando na escadinha, batendo as pernas feito criança.
- O João ia gostar dessa tua boia.
Era a primeira vez que ela dizia alguma coisa, sem eu perguntar. Nunca tinha falado de João, ou qualquer outro nome. Pensei que fosse namorado. O cara da moto que ia buscar ela no fim da tarde.
- João é meu filho, disse. Ele tem 1 ano e 2 meses.
Olhei para a barriga dela, tão lisinha. Pedi para ela trazer ele, outro dia. Meu pai ia ficar fora até a outra semana. Eu poderia cuidar dele, brincar na piscina, enquanto ela limpava a casa.
Ela disse que não, e não insisti.
Teve um outro dia em que ela entrou na piscina de novo. Deixei ela ficar na boia comigo, depois a boia virou e tive que ajudar ela a chegar na borda. Não foi difícil, ela era leve, flutuava nos meus braços. Rimos muito nessa tarde. Ela tinha uma falha no dente. Eu usava aparelho. Queria dar um beijo nela, mas não dei.
No começo do outono ela parou de ir. A Mila morreu logo em seguida, e eu passava os dias trancada no quarto, escrevendo num diário. Comecei a me cortar por essa época.
Só muitos anos depois, meu pai me falou a verdade. 


Exercício para a oficina de escrita, Lucia Berlin

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