quinta-feira, 30 de março de 2023

Funeral

 


Está mais chique,
definitivamente. Parece mais alta. O cabelo curto deixa a nuca à mostra, o vestido preto lhe cai bem. Nota-se de longe, caro. Tudo nela. Toco seu ombro, ela se vira, engole o sorriso. Não sabia que você estava na cidade, diz. Não podia deixar de vir. Sinto muito, Laura. Pois é, faz parte. Acende um cigarro, me oferece. Parei de fumar, um só não vai fazer diferença, Carlos. Vai bem com teu uísque. Aceito. A vista da sacada é bonita ao crepúsculo, as luzes da capital e atrás o rio pintado de vermelho, é verão mas há um vento leve, quase frio. Sua mãe está muito bem, digo. Ela tira os óculos e me encara, vejo o azul desbotado de seus olhos, mais opacos agora, ainda ferozes. Rugas finas se formam ao redor dos lábios enquanto ela traga o cigarro. Você não deveria estar aqui, e sabe disso. Ela também saberia, se lembrasse quem você é. Como pode? Olho para a idosa sentada numa poltrona, as costas rijas, postura impecável, de pernas cruzadas, a beleza preservada. Ninguém diz, sussurro. Eu, me diz ela. Eu digo, eu sei, eu carrego cada miĺimetro da memória que ela apagou, não se iluda. A sala do amplo apartamento está cheia de amigos e parentes que não reconheço. Muito tempo de exílio. Está na minha hora, digo. Viajo esta noite. Laura dá de ombros, não importa.

Você ficou bonita igual a ela. Ela suspira forte, abre a boca, desiste e se cala. Acende um cigarro no outro, o cinzeiro está abarrotado de pontas vermelhas. E o tio, pergunto. O que tem, resmunga. Ele sabia? Nunca soube. Você não estaria aqui, Carlito, se ele soubesse. Filho de uma puta. Sopra a fumaça no meu rosto, o vento agora é quente. Chuva de verão.

Texto para a oficina de escrita.


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