quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Frestas


 
 


Sexta-feira, início da noite. A porta da loja está semicerrada. Pela fresta vejo que o Sérgio e o Antônio já chegaram. Subi a ladeira devagar, mesmo assim estou ofegante. Acendo um cigarro antes de entrar. O Chico, desde que parou, não gosta mais que se fume lá dentro. Fala que tem risco de incêndio, mas isso daí sempre teve, aquele monte de disco velho até o teto, essas casas antigas do centro tem a elétrica toda cagada e ele nunca se interessou em reformar, mesmo quando estava ganhando mais grana.

Não viram que cheguei, a TV já está ligada no campeonato de sinuca, mas ainda não começou. O Antônio está na Coca zero, descobriu um diabete na semana passada. Os outros dois, sentados nos caixotes, bebem cerveja.
São meus amigos de colégio. Os guris. A gente tinha uma banda de garagem com esse nome. Todos magros, roqueiros e cabeludos.
O Sérgio não tem mais cabelo nenhum, já o Chico está cada dia mais parecido com o John Lennon, se o John Lennon tivesse vivido o suficiente para passar dos 60 anos. Usa camiseta de banda, é o único que não engordou, nunca ganhou dinheiro, e ainda está casado com a mesma mulher.
Duas jovens de mãos dadas e blusas vermelhas vêm subindo a rua, enroladas numa bandeira colorida. Elas me pedem fogo, acendem um baseado:
- Quer um pega, tio?
Aceito. Perguntam da loja, Boca do disco. É boca de fumo, querem saber. Dou risada, um dia pode se dizer que foi. Agora é só uma loja velha, que vende vinil de capa ensebada.
- Meu vô tem um toca discos, ainda funciona. Será que a gente pode dar uma olhadinha nos discos?
A mais baixinha usa uma argola enorme no nariz, a franja no meio da testa, parece uma índia. É bonita. Não deve ter vinte anos, respondo que a loja está fechada. Que voltem outro dia, de dia.
Elas espiam pela fresta, o que vocês estão assistindo, tio?
- A final do mundial de snooker.
- Eu gosto de jogar bilhar, diz a magrela. Mas nunca assisti na televisão, nem sabia que passava. Minha mãe curte ver campeonato de golfe.
O Chico aparece na porta, e me chama para entrar. O jogo está começando.
Preciso de outro cigarro, já vou.
- Ah, esse vício...
Ele me alcança um latão. Daqui a pouco o Sérgio vem me fazer companhia, é só tomar mais uma e ele vira fumante do pior tipo, o se me dão.
As meninas vão embora, desaparecem na esquina sem dizer tchau. Geração estranha, essa.
Espio o jogo pela fresta.
Do outro lado da calçada, em frente ao bar, o Neco acende o fogo na churrasqueira de lata. O cheiro de carne gorda se mistura com o do meu cigarro, e as fumaças deixam a rua enevoada.
Faz um pouco de frio, aqui fora.


Texto oficina de escrita- correlato objetivo.

 


 

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