quinta-feira, 17 de março de 2022

Pedaço de mim

 



É uma quarta feira de outono, igual a tantas outras. 

Previsão do tempo:céu sem nuvens, temperatura amena. Horóscopo do dia: saúde boa, romance sem novidades, dinheiro surpresa. Cor, amarelo. 

Termina o café, coloca o jornal na área de serviço, troca a água do gato, dá ração para a cachorra. 

Uma última olhada no espelho, óculos escuros, calça jeans, camisa de linho. Consulta o relógio de pulso, 8h30.

Decide ir andando, está fresquinho e tem tempo de sobra. O celular vibra na bolsa, todas as mensagens são urgentes, nenhuma é importante.

Caminha duas quadras, sente a pontada conhecida. A dor dos últimos 6 meses. Hoje vai assinar os papéis, oficializar o fim, marcar com uma esferográfica azul o começo do nada, do vazio que se estende à sua frente, interminável feito uma planície nas estradas do sul. 

Lembra da música do Chico, aquela onde ele fala que a saudade é o revés de um parto. 

Há seis meses e sete dias, ela recebeu a pior de todas as notícias. 

E com ela, e depois dela, o desmonte gradual de tudo que um dia foi. Os silêncios, os gritos, as acusações empilhadas feito boletos que ninguém quer ou tem como pagar. A ausência que não puderam compartir crescendo entre eles feito um muro.

Um pingo, depois outro. A previsão do tempo estava errada, afinal. A chuva aperta, ela se apressa. Olha para os pés molhados, as sapatilhas amarelas agora lhe parecem ridículas, muito frágeis, muito bobas. Chega na frente do cartório, se abriga sob a marquise, respira fundo.

O relógio marca 8h57. 

Está a três minutos de terminar o maior capítulo da sua vida, registrar o fracasso em preto e branco, dizer adeus e voltar para aquela casa vazia, e olhar para aquela porta fechada.

A porta do quarto. Do quarto que ela não arrumou.


Exercício paraa oficina de escrita- trama linear 

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