quinta-feira, 1 de maio de 2014

Anas e Tantas Outras

"Doutora, é que teve uma briga ontem, eu e o meu marido. E ele me empurrou na parede. Dói tudo, os rins, tudo."
Imagino que doa, muito. Tudo. 

Vou chamar esta moça de Ana. Mas poderia ser Maria, Lúcia, Cláudia, Rita. Poderia ser qualquer uma, e ter um nome qualquer. 

Ana tem 21 anos, e está casada com este homem há quase 7 anos. Tem com ele uma filha de cinco.

Pergunto se ele costuma bater nela, e se faz isso há muito tempo. Ela responde que no começo não, ele não batia. Mas que sim, sempre a agrediu, com palavras. "Ele me ofende muito, diz coisas horríveis." Só há uns dois anos ele começou a bater, de verdade, "nunca na cara, para ninguém perceber".
E quebra tudo em casa, já quebrou o celular dela, a TV nova, até o microondas.
Mas não na frente da filha, isso não, graças a Deus. Agora cismou que ela tem um caso com o gerente do supermercado onde trabalha, porque vai ser promovida. Uma vadia, por isso chegou tarde ontem. Este foi o motivo da briga.

Pergunto porque ela não denuncia, Maria da Penha, etc... e ela me responde: "e adianta, doutora? É até pior. Me diz, adianta?". Eu não tenho o que responder. Fico olhando para ela, e ela fala, e fala, fala muito. Não chora, está conformada. Conta que ele já disse que se ela fizer alguma coisa, qualquer coisa, ele a mata. Que não se importa de apodrecer na cadeia.
Ela vai sair da consulta, depois de pegar a receita dos analgésicos, e pedir demissão. "Não tem outro jeito, doutora, ele exigiu. Falou que se eu não pedir, ele vai lá no mercado e quebra tudo, quebra a cara do gerente."
Pergunto a Ana se não tem apoio na família. Ela diz, "tem a minha mãe, ela fala para eu denunciar ele. Mas e daí?  Como ela ia conseguir me proteger?" Finaliza, com um suspiro: "Pior é que eu gosto dele. mas ele não acredita em mim. "

Ela parte e me deixa com dor, também. Nos rins.


Ela vai embora e me deixa as mãos vazias da impotência e da descrença.
No indivíduo, e no sistema.


Ela sai sozinha. Mas não está sozinha. E isso não faz a menor diferença para ela. Em breve, pode se juntar às outras muitas, e se tornar mais um número de estatística. 

Mais uma, entre tantas. Menos uma.

Ana, Maria, Lúcia, Cláudia, Rita, Fernanda, Daniela. Você. Eu.

Dani Altmayer

3 comentários:

  1. Muito bem escrito e colocado, querida Daniela! Como sempre. Sabes descrever e é agradável ler teus *essays*... mesmo quando o assunto é triste e sem solução! Obrigada por compartilhares mais uma constatação da desgraça que acontece a tantas de nós... mulheres e impotentes quanto as agressividades com palavras, ou maus tratos físicos! Continuo te acompanhando e admirando tudo o que escreves! Parabéns, querida! Não pares nunca! Estás sempre melhor e torço por ti e teu sucesso! Beijos da Eliana Braunstein

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  2. Lindo retrato de uma triste realidade. Parabéns!

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  3. Gosto da forma que retratas e a maneira que sentes. É pura sensibilidade!! Um bj em vc.

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