quinta-feira, 24 de abril de 2014

Carta para Susana


O tempo era emprestado, como o são as melhores coisas na vida. E, quando a gente sabe que o tempo é contado, a gente toma muito, mas muito mais cuidado. Cada nascer do sol ao seu lado, cada caminhada na praia, cada mergulho em seu corpo, tinham um sabor agridoce, de felicidade roubada, de fim de verão. A pungência do que é temporário, e se dissolve na urgência que dói e pacifica, tudo ao mesmo tempo, e tudo misturado.
Houvera uma grande tempestade, e o navio atracou nesta ilha por acaso, alguns anos atrás. E, se nada é por acaso, ela era para ser. A feiticeira que me arrastou para a fogueira. Uma menina mulher, de cabelo encaracolado e olhos da cor do céu. 
De todas as certezas que derrubei ao longo de tantas rotas, ela foi a única que restou. O porto do meu destino final.
O plano foi tomando forma ao longo dos anos. Nas noites estreladas e solitárias, quando o navio já dormia e meu sono não vinha. Foram muitas as travessias. Engraçado é eu nunca mais ter passado por aqui, até voltar. Tudo o que eu tinha eram uma foto e um desejo infinitos. Um mar e uma promessa, para me devolver. Bastariam.
O avião partiu no dia seguinte à homologação da aposentadoria. Foi uma longa viagem, mas durou apenas um instante. Um segundo foi o que bastou para dissolver o cansaço das muitas horas de vôo e as outras tantas de água. O cansaço de uma existência. Ao desembarcar nesta terra, eu tive a confirmação de que estava onde precisava estar. Uma vida nova, a que eu sempre quis. Uma chance de recomeçar do zero. Quem não quer? Um homem de cinquenta e poucos anos, uma mala na mão e nenhum passado.
O tempo que levei para a reencontrar, este sim. Foram horas intermináveis até eu descobrir sua casinha singela, perto da praia, cercada de bouganvilles em flor. Ela estava sentada no degrau, as mãos segurando a cabeça, e chorava um pouco. Não me contou a razão de suas lágrimas, naquele dia iluminado de maio. Hoje eu sei. Quando levantou os olhos para mim, ela apenas sorriu. 
Ela nunca perguntou nada, e nem eu. Nenhuma pergunta foi necessária, porque juntos tínhamos todas as respostas. O amor se fez, qual castelo na areia. E o mundo, o mundo era nosso. Ela era a minha ilha. No entanto, eu sabia que este tempo era apertado. Por alguma razão, escorria. Quem nesta vida tem o direito de ser assim, tão indecentemente feliz?
Eu não falei de você, Susi, e não falei das crianças, que nem são mais crianças. Era como se o antes não existisse. Não é que eu os tenha abandonado, você sabe, não totalmente. Mandei dinheiro todo mês, o bastante. Não era isso que importava, afinal? Sempre achei que bastava. Fiquei com medo de ela não aceitar, no começo. De não entender que tínhamos um destes casamentos. E a gente levou vidas separadas por tanto tempo, eu sempre no mar, você envolvida com a loja e os meninos. Era conveniente. Não era?
O mundo que deixei ao deixar você, simplesmente não parecia mais de verdade. Aí não tem onda quebrando na praia, nem lua refletida no mar. Nem história de pescador ou lenda de sereia.
Eu vim para ficar. Vim para sempre. Mas ela me mostrou que para sempre não passa de um instante. Nunca passou. 
Eu pretendia te pedir o divórcio, um dia. Ia me casar com ela. Só que ela tinha um segredo também. 
Foi então que compreendi. A vida não tem carta de navegação. 
Amor não vem pronto, assim. E se vem, a gente não casa com ele. Aliás, a gente não casa com o grande amor de uma vida. Quase nunca. 


                                                  ******************
Pedro olha pela última vez para a casinha de tijolos brancos. As buganvilles não estão mais em flor. Um vento suave e frio sopra a cortina de algodão, e ele espia. Nem sinal dela. Apenas um homem, moreno e jovem, fuma na janela, contemplando o horizonte. O dono.
O sol se põe no mar, pintando o céu nas cores do outono que se aproxima. 
Está quase na hora de embarcar, e ele ainda precisa passar na agência do correio, depositar o envelope e o cheque. Pedro vai, sem olhar para trás. Perdeu a bússola e o coração, mas não precisa mais deles. Está resignado. O tempo é de partir, para o velho capitão.

Dani Altmayer

Exercício para Oficina de Escrita Criativa- Módulo III

2 comentários:

  1. "A vida não tem carta de navegação".
    Lindo texto, lindas palavras.

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  2. "O mundo que deixei ao deixar vc..."
    Bárbaro

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