segunda-feira, 2 de março de 2015

Afinal de contas


Amanhã começa a empregada nova. Tomara que dê certo, dessa vez. Peço a Deus que sim, e ele há de me ouvir, afinal de contas, não nasci para limpar chão de cozinha. E Ele sabe disso. Afinal de contas, vou à igreja todo domingo, com meu marido e meus filhos. Somos uma família do jeito que Ele gosta.
Sim,tenho curso superior,falei da primeira vez. Engenharia, esqueceu? Não trabalho porque não preciso mesmo. O Joaquim paga as contas, e quase não reclama. Só de vez em quando implica com a fatura do cartão de crédito. Nem me importo, peço desculpas,faço um agradinho, e pronto. Resolvido. Eu sei do que ele gosta, tenho meus segredos, foi assim que convenci a me pagar a lipo e o silicone. O Fábio adorou.
Mas, voltando à empregada, não é porque eu não trabalho que vou ficar lavando banheiro. Nada disso. Pago para não me incomodar. A ultima foi um desastre, e olha que eu trato bem. Aí parece que é pior, elas tomam liberdade. Ela até era uma mulata bem bonita. Não é pela cor, afinal de contas. Não sou preconceituosa, meu filho tem um amiguinho negro, adotado, um amor ele. Para mim todo mundo é igual, nem desvio na rua como a Patrícia faz. Só quando eles usam boné, de boné tenho medo. Bom, pode ser um tipo de preconceito, mas não é pela cor. Deus sabe que não. O amigo do meu filho, mesmo. Quem adotou foi um casal de gays. Por mim tudo bem, desde que não fiquem se agarrando na minha frente. Na minha igreja falam que é doença, e tem cura. O Joaquim acha um horror. Mas eu, não. Se Deus não gosta, bom, eles que se entendam com Ele. É o que eu acho. Eu faço a minha parte, na minha família tá tudo certo. Leio muito, sabe, e nas revistas a gente vê de tudo. Abre a cabeça, um pouco. Mas outro dia o Júnior estava brincando de boneca com a irmã, o Joaquim ficou louco. Disse que era minha culpa, por causa das companhias, e tal, falei para ele que nunca iria deixar meu filho ir na casa desse casal homoafetivo. É assim que se fala. Homoafetivo. Na escola, tudo bem. Na pracinha. Em casa, não. Eu sei, o Joaquim é bem rigoroso nesses assuntos. Respeito, afinal de contas é meu marido.
Nas últimas férias, em Cancun, tinha duas moças que andavam de mãos dadas. Joaquim quase enlouqueceu. Tínhamos levado a empregada, a mulata. Que corpo, nossa. Tive que pedir para ela não colocar biquini, acredita? Meu marido é muito puritano. Eu entendo ele, tem coisa que não pega bem. Demiti depois,ela era muito abusada.
Doutor, nem sei porque comecei a falar da empregada, isso não é assunto para terapia.
Não, nunca mais vi o Fábio. Ele não vai mais na igreja também. Melhor assim.
Sabe, eu queria mesmo era falar dos remédios. Parei de tomar todos, estava com a boca muito seca, e me deixavam com mau hálito. Mas preciso de um para dormir. Que dê para tomar com álcool.
Sim, a igreja permite beber. Vinho. Ah, amanhã tem aquele jantar de caridade, em defesa da família, vai até aquele deputado pastor. Eu que estou organizando. Isso tem me tirado o sono. Isso e o Joaquim, que só trabalha, trabalha, chega em casa super tarde. Nem me toca mais, de uns tempos para cá. E o senhor sabe, né, estou com quarenta anos. No auge. Já até conversei com o pastor sobre isso, a gente fala de tudo sim, ele gosta de saber dos detalhes. Não, do Fábio não. Nem faz ideia.
Eu ando muito nervosa, por tudo isso. E mais a empregada começando amanhã. É muita coisa junta. Mas essa, afinal de contas, é uma moça que limpava a igreja, branca, casada e com cinco filhos. Acho que agora vai dar certo. Deus queira.
Preciso de algo forte, doutor. Que não me deixe com a boca seca, Deus me livre.
Já? Passa tão rápido, vinte minutos…Até mês que vem, então. Vou pegar as crianças na escola, depois preciso ver se meu vestido ficou pronto. Mandei ajustar, emagreci muito depois que comecei a academia. Estou ótima,graças a Deus.
Adoro conversar com o senhor, fico bem mais tranquila. Afinal de contas, não é fácil para mim.
Só Deus sabe.
Dani Altmayer

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