segunda-feira, 9 de março de 2015

Azuis ( Blues)



Já faz algum tempo que ela acorda assim, com um gosto ruim na boca, com o estômago embrulhado, não adianta nem escovar os dentes até quase a gengiva sangrar. Só passa mesmo quando mistura um pouco de vodka no suco de laranja. Come metade de uma torrada com mel, e toma uma xícara de café sem açúcar. Tem que espantar o sonho. Toda noite tem o mesmo sonho ruim, todo dia o mesmo gosto ruim na boca, e o enjoo.
Não sabe quando começou a beber pela manhã, deve fazer uns dois meses, bem pouquinho, um dedinho de vodka num copo grande de suco de laranja. Nada de exageros. Só o suficiente para amortecer um pouco a náusea, e ajudar a encarar o dia corrido na escola.
Escova os dentes de novo, e se olha no espelho oval do banheiro. Pensa em passar um batom, mas desiste. A boca está grande demais para o rosto encovado. Coloca os brincos pequenos. O cabelo precisa de um corte, decide que vai cortar bem curtinho, mais fácil de manter.
Vestida com uma camiseta branca e um jeans surrado, olha para o armário bagunçado, e despreza os vestidos que antes adorava usar. Precisa fazer uma arrumação, tem que se desfazer de tanta coisa mais. Contempla as prateleiras e cabides meio vazios no canto esquerdo, onde uma gravata azul e algumas camisetas de time de futebol, também azuis, ainda resistem, aguardando a coragem que parece não ter pressa em chegar.
Tem tempo. Liga o computador, e lê o horóscopo. “Tome cuidado com os imprevistos.” Abre uma ou duas páginas que curte, em busca de uma resposta, uma imagem, uma frase redentora que seja. Sem alento, verifica a caixa de emails, que está cheia de propagandas e vírus, e um aviso do contador. Reunião às 14 horas. Suspira.
Vai no quarto ao lado, e olha as fotos do mural em cima da escrivaninha. A viagem à Disney, tão sonhada e curtida. Senta na cama de solteiro, e passa a mão na colcha, também azul, com o símbolo do time do coração. Pega um troféu, na coleção, e sorri sem querer. Coloca de volta na prateleira. Ajeita o ursinho em cima do travesseiro, e fica satisfeita. Está tudo no mesmo lugar, como sempre tem que ficar.
Na cozinha, passa uma água na louça e pega a garrafa de suco de laranja. Mais um copinho, não vai fazer mal. Aumenta a dose de vodka. Na porta da geladeira, o imã de papel desbeiçado com a foto 3×4 que ganhou no dia das mães, tantos anos atrás.
Na sala escura e silenciosa, afunda na poltrona e tira as sapatilhas. O pé direito ainda dói um pouco.
Fica olhando para o telefone por alguns minutos, até decidir.
Liga para a escola, e avisa que não vai poder trabalhar hoje. Não está se sentindo bem. De novo, é a segunda vez só nessa semana, mas tudo bem. A diretora entende.
Todo mundo entende. Menos ela.

Dani Altmayer

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