sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Eu Sou

“Não doador de órgãos e tecidos”.
Era o que estava carimbado na identidade dele. Um homem saudável, de 43 anos.
Tive vontade de perguntar “por quê”? Mas não perguntei. Apenas devolvi a carteira, e segui a consulta.
Imagino que ele tenha lá seus motivos, sejam de que ordem for, religião ou fé. Tenho por hábito respeitar as escolhas alheias, ainda que não as entenda ou não concorde. Depois que ele saiu, fiquei pensando. Antipatizei com aquele carimbo e com aquele homem, de quem não sei quase nada.
Não sei se ele tem um amor. Um filho. Uma mãe, ou um pai. Só sei que espero que ele nunca precise de um rim, uma córnea, uma medula. Nem que ninguém que ele ame sofra por anos na fila de um transplante.
Porque, de todas as hipóteses e crenças que tenho, só uma certeza me resta. Que nada resta, do corpo, depois. Da alma, não sei.
A morte é o fim, dessa forma.
Então, não quero que chorem por mim, depois de morta. Não quero flores e homenagens póstumas. Quero-as todas em vida, as lágrimas, as flores e os amores. Não quero que esperem que eu morra para dizer que me amam, que me digam agora.
Quero doar o meu corpo, em vida. Minha alma, em vida. E quero receber, em vida.
No fim, que virá, não tem como escapar, também quero doar. O meu corpo sem vida sem alma.
Invólucro vazio, papel de embrulho. Nem precisam enterrar. Tanto faz.
Podem dar. Tudo, e cada pedaço que ainda prestar.
Uma morte, a serviço de outras vidas.
Mais bonito que isso, talvez só uma vida, a serviço de outras vidas.
Dani Altmayer

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