quinta-feira, 26 de março de 2015

A Fada

       


Caro Francesco,
o tempo dentro de um convento parece obedecer a um ritmo diferente, como o amigo bem pode calcular.
Faz apenas três semanas que estou aqui e soa como uma eternidade. O dia começa muito cedo, antes mesmo do alvorecer. Às quatro da manhã acordo com o toque de despertar, um monge percorre os corredores estreitos tocando uma sineta, chamando a todos para o culto matinal.
Eu, como hóspede, estaria dispensado, mas não quero parecer demasiado preguiçoso ou indiferente, então compareço à capela para as orações todos os dias, o que me entedia deveras.
Após o culto, tomamos o desjejum no refeitório, e este consiste de mingau de aveia e ovos, acompanhado de um chá de ervas que tem um sabor pavoroso. As refeições são todas frugais, claro, com exceção dos domingos,  quando é permitido comer carne, em geral de coelho. Na maioria dos dias, servem pães, batatas e cenouras cozidas, e a infusão amarga de ervas digestivas.
O vinho, meu caro, só é permitido na missa, ou na cela do abade, mas nem por isso sinto falta. Você não iria acreditar, mas tenho caminhado muito, logo cedo, pela floresta. O verão nessa região da Alemanha é um engodo, bem diferente dos dias escaldantes em Roma. Aqui a temperatura é amena e faz frio à noite. O clima está fazendo muito bem para os meus pulmões, e a tosse quase cessou. Foi justamente em uma dessas caminhadas que aconteceu algo muito interessante, uma descoberta que me facilitou em demasia o trabalho que estou realizando.
É por isso que te escrevo agora, meu amigo, porque estou para lhe enviar uma preciosidade. O amigo bem sabe do meu faro para encontrar relíquias. A biblioteca desse pequeno mosteiro lhe encantaria, estou seguro, como a mim encantou desde o primeiro instante. Apesar de úmida e mal cuidada, e de muitos pergaminhos e manuscritos estarem em péssimo estado de conservação, o acervo é grandioso e raro, um deleite para almas eruditas como as nossas.
O irmão que cuida da biblioteca é um homem velho que está quase cego, mas vigia seu território como fosse um cão feroz. E, apesar de minhas credenciais, a princípio não me foi dada autorização para fazer cópias ou retirar qualquer um dos livros ali constantes.
Acontece que acabei por encontrar o exemplar de um manuscrito em latim, dividido em seis livros. A obra é um poema original, que imagino ser único, e estou fascinado com esse livro, meu caro, um verdadeiro achado.
Mas, como ia lhe dizendo, cópias não são permitidas, e o roubo me pareceu sempre uma perfídia além do que meu caráter humanista permitiria, mesmo que alguns possam pensar o contrário. Portanto, aqui entra o que preciso lhe contar, em segredo, para explicar o que acontece no momento, e porque você deve, em breve, e apesar disso, receber um volumoso e valioso envelope.
Em uma dessas belas manhã de sol, caminhando pela floresta, perdido que estava em meus pensamentos a respeito do dito manuscrito, ouvi um riso de criança.  Surpreso, pois o mosteiro está distante a milhas da aldeia mais próxima, me escondi atrás de um pinheiro para observar. Foi então que a vi, uma menina, de cerca de doze anos. Uma fada loira,  de cabelos quase brancos e olhos escuros como as noites de lua nova,  se banhava no riacho ao amanhecer. Parecia vir de outro mundo, o som daquela risada cristalina e pura, e não pude deixar de ficar fascinado com a beleza da cena. No entanto, aqueles olhos me incomodavam, era como se já os tivesse visto antes. Depois de alguns instantes, a criatura saiu das águas e vestiu-se com uma túnica branca, tinha os pés descalços e os cabelos presos numa trança grossa. Sem perceber a minha presença, correu em direção a uma pequena clareira, que até então eu não tinha notado. Segui a jovem, não pude evitar uma certa curiosidade. Seria ela um duende, ou uma ninfa? Qual não foi meu espanto quando, ao chegar à clareira, encontrei um pequeno chalé de pedra, em cuja porta estava uma senhora muito gorda, vestida de preto, e parecendo zangada com a criança.
Nenhuma das duas percebeu minha presença. Os olhos da mulher mais velha eram azuis e frios como o céu de outono. Tinha os cabelos loiros envoltos em um trança ao redor da cabeça, e era bonita também. Havia uma vaca pastando mais adiante, e algumas galinhas, além de um cachorro manco. Não sei quanto tempo se passou, fiquei como que hipnotizado pela domesticidade da cena, até ouvir o barulho de cascos se aproximando. Por instinto, percebi que deveria me esconder novamente.
- Papai!
O anjo gritou, para o velho abade que apeava do cavalo, e abria os braços para ela. Ele trazia nas mãos um cesto de frutas e pães, que a mulher se apressou em recolher.
Foi quando descobri de onde conhecia aqueles olhos negros e profundos.
E foi quando consegui, como você já deve ter deduzido, a permissão velada para fazer a cópia do poema encontrado.
Espero que não comente, e não passe adiante essa informação em Roma. Conto com sua total discrição. Apesar de eu duvidar que possa interessar a alguém a vida sexual de um monge em um mosteiro perdido, incrustado na Floresta Negra, pretendo cumprir a palavra dada ao abade. Meu silêncio em troca da cópia dessa preciosidade, uma verdadeira jóia, como você verá.
Tenho trabalhado incessantemente nisso, e de maneira discreta, sem que o padre cego perceba o que estou copiando. Apenas o abade compartilha nosso segredo. Enquanto a claridade e meus olhos cansados permitem, passo os dias na biblioteca,  e creio que em mais dois ou três meses poderei lhe enviar a remessa completa dos livros. Não a levarei pessoalmente, pois minha viagem ainda não terá terminado.
Como bem sabe o amigo, a minha busca nunca tem fim.
Sem mais, subscrevo-me, atenciosamente,
 Poggio

Dani Altmayer

Tema da aula de escrita criativa, a respeito de Poggio Bracciolini, um humanista italiano que caçava  "tesouros" perdidos.
Afe!

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