segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Quase Um Segundo

Ela reconheceu a voz dele no instante em que ele disse "alô." Como se não houvesse passado mais de quinze anos desde a última vez que falara com ele.
Conheceram-se no tempo da faculdade. Ele viera de fora, para estudar na cidade dela. Acabara há pouco um relacionamento, e estava muito machucado. Ela, namorava há anos um outro estudante, um pouco mais velho.
Encontraram-se em uma festa, no final daquele primeiro ano. Os dois estavam sozinhos, e acho que foi a primeira vez em que realmente se enxergaram. Naquela noite, algo aconteceu. Uma faísca, uma atração, um tesão maluco. Uma coisa meio sem explicação. Ficaram juntos, escondido de todo mundo. E se apaixonaram.
Logo depois, as aulas acabaram. Vieram as férias, e a separação. Trocaram algumas cartas, naquele verão. Ela esperava, impaciente, o carteiro chegar. Precisava ser a primeira a pegar a correspondência, para ninguém notar. Ele escrevia bonito, mandava letra de música."Quais são as cores, e as coisas pra te prender..." Parecia que gostava dela. Ela gostava dele. Mas tinham medo. Ele, muito desconfiado. Ela, tinha o namorado.
Escondia as cartas, e lia no banheiro. As pernas tremiam. Mas não admitia.
Quando o semestre recomeçou, e ele voltou, botou pressão, ela decidiu. Terminou com o namorado, mas não contou. Queria fazer uma surpresa para ele.
Uns dias depois, teve uma festa de outro curso. Ele estava lá. Ela também. Olharam-se de longe, mas nenhum teve coragem de se aproximar. Até que aconteceu. Um terceiro cara chegou, e  foi com este que ela ficou. Beijou, na frente do outro. Dele. Que não acreditou. Ela nunca esqueceria a dor daquele olhar, naquele momento. Mas estava feito.
Poderia ter terminado por ali, mas não terminou. Ele discutiu feio com ela.  Ela voltou para o namorado. E continuou a ficar com ele, volta e meia, em festas. Pegavam fogo, os dois, juntos.
Estudavam no mesmo curso. Faziam trabalhos em grupo. Brigavam feito cão e gato. Perseguiam-se como gato e rato. Não concordavam com quase nada. Ela queria ter sempre razão, e ele era muito teimoso. Além disso, nunca a perdoou por aquela noite. E ela nunca soube explicar o que acontecera. Nem para ela mesma. Não sabia porquê, talvez não existisse um porquê. Coisas acontecem.
Ela morria de ciúme dele, quando o via com outras garotas. Ficava com saudade quando ele sumia. Mas não assumia. Eram os dois imaturos, e jovens Combinação explosiva. Repeliam-se e atraíam-se, na mesma proporção. Numa mesma e perigosa intensidade. Brigavam, e beijavam-se, com a mesma paixão. Queriam, e não queriam. "Às vezes te odeio por quase um segundo, depois te amo mais..."
Passaram anos assim, todo o tempo do curso, até a formatura. Inclusive na formatura.
Quando ela finalmente encerrou o namoro, ele estava envolvido em um relacionamento sério com outra pessoa.
Mudaram os dois de cidade, casaram-se, tiveram filhos e perderam o contato. Ela nunca esqueceu, e também nunca entendeu. Nunca soube do que teve tanto medo.
E, porque nunca esqueceu, reconheceu, imediatamente. E não estranhou. Achou natural. Um telefonema vindo do nada, já tarde da noite, depois de tantos anos. Ficaram mais de uma hora conversando, e foi como se o tempo não existisse. Não havia abismos naquela conversa. Falaram de tudo, e, principalmente, deles mesmos.
Como o tempo modifica a memória, já não lembravam mais das brigas. Do beijo no outro cara sim, este ele não perdoou. Teve que mencionar, de novo. Mas falou também outras coisas, doces e belas, de como se sentia ao lado dela, de como era bom quando estavam junto. Lembraram histórias e amigos. Deram risada. Contaram da vida, um pouco de cada lado.Um papo bom, e tranquilo. Emocionado, maduro. Combinaram de se ver, talvez. Encontro que nunca chegou a acontecer.
Não soube mais dele, e já se foram um par de anos. Mas nada é por acaso. Tem algo que ele não sabe, nem imagina. Aquele telefonema, tarde da noite, inesperado e único, mudou a vida dela. Foi naquele dia que ela percebeu tudo.Aquela ligação foi como um raio, fulminante, cheio de luz.
Foi naquele clarão que decidiu terminar uma relação de anos, doentia, truncada, e já sem razão. Naquele exato instante. Às vezes, basta uma breve visita ao passado, para alguém se resgatar.Ao recordar-se de quem fora, do que sentira e vivera, ela se reconheceu. Ao ver-se, tão lindamente retratada pelos olhos dele, ela lembrou. De quem ela era. De que era possível, sim, amar, e ser muito amada. Muito,e sempre, nunca menos do que muito, e nunca menos do que sempre.
Pode, finalmente, libertar-se do medo que a continha. E soube, então, o que era.
Era medo de acreditar.
E não existe prisão mais cruel do que o medo de amar.

"Será que você ainda pensa?"
                    FIM

Dani Altmayer

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