sábado, 16 de junho de 2012

A louca

Ela chega de mansinho. No começo você nem percebe.  Mas ela está ali, meio tímida ainda. Vai mudando uma ou outra coisa de lugar, sutilmente.Você não sabe bem porquê, mas sente uma necessidade urgente de passar na Confeitaria Princesa, comer um cachorrinho, duas empadas de camarão e um mil folhas com uma caçulinha. Depois sente uma culpa terrível e promete para si mesma: nada de janta hoje. Chega em casa, briga com o filho, discute com o cachorro e pronto: lá se foi um pacote de mariola. E pensa, com seus botões: que dia, meudeus, que dia! Você ainda não sabe. Não se deu conta. Pensa que está cansada, e vai dormir, afinal, pelo menos é o que dizem, amanhã é outro dia.
No tal outro dia você acorda bem humorada, até chegar no chuveiro e perceber que um dos seus 350 frascos de xampu acabou. Logo hoje? Que era dia da limpeza profunda com hidratação intensiva e reparação de pontas? Ai, não pode ser. Você fica à beira das lágrimas. Só pode ser perseguição. Sai do banho já irritada, derrama o leite e a torrada queima. Aí você chora, com razão. Respira fundo três vezes e sai pensando no quanto tudo é difícil, em como você é uma pobre coitada, que só trabalha, trabalha, e faz tudo, e ninguém ajuda, e é só você. Epa! Não. Não é só você. Não mesmo. Você tem companhia, embora possa não ter percebido ainda. Ela. A louca. Chegou. De novo.
Você não está sozinha. Está com a louca. Ok. Você já sabe então. Porque anda tão difícil entender o que os outros falam. De onde vem tanta emoção. Porque ontem você chorou assistindo uma comédia romântica. E depois chorou porque nunca foi pedida em casamento em Paris. Chorou porque nunca foi a Paris. Chorou porque nunca foi pedida em casamento. Enfim,  motivos justos. Afinal, sua vida é tão cinzinha, sem gracinha, como você não iria chorar vendo um filme lindo daqueles? Em Paris? Perdoada.
Mas hoje, hoje não. Hoje você já estava assim, né, bem sensível, e sobrecarregada, e pensando no quanto o mundo era injusto com você. Abre o facebook, sua amiga publica aquela citação tão perfeita, que se encaixou tão bem para você, que só podia ser coisa do destino. E a foto, que lindo aquele gatinho, tão fofo, nossa, você só podia ficar mexida, até derramar uma ou duas lágrimas. Obrigada querida, por ter a palavra certa na hora certa, amiga de verdade é assim. A amiga, que você não vê há dez anos não entende nada, só estava tentando defender a causa da adoção de animais abandonados.
É a louca.
E você segue, se emocionando com aquelas postagens de criancinhas e bichinhos, e aquelas frases feitas todas tão perfeitas. E pensa como é lindo o mundo no facebook, como as pessoas são felizes igual a comercial de margarina.Tanto amor, com suas famílias bonitas e estruturadas, suas férias no Caribe ou em Tramandaí. Porque no facebook até Tramandaí fica bonito. Você se irrita um pouco. Porque você ali, de plantão, se matando de trabalhar, solitária, com uma espinha no meio da testa e o cabelo daquele jeito. Gorda. Sem uma roupa no armário para vestir. Sem um filme bom passando na TV. O namorado foi escalar uma montanha, só volta quando a louca partir. Se voltar.
O filho se trancou no quarto para jogar videogame. O cachorro só mexe as orelhas. Você põe uma música e chora. Tira a música. Acende um incenso, se coloca na posição de lótus e, vamos lá, inspira, expira, inspira, e sai uma respiração de cachorrinho no parto. Você fica tonta. Aperta o peito. Dá nó na garganta. Tem vontade de gritar, de sair do corpo. De fazer uma viagem astral. E deixar a louca ali, ela que se vire com ela mesma.
Porque você está cansada de tentar parecer normal, exausta de ficar o tempo todo tentando reprimir, abafar, prender a louca. Jogou- se por cima dela, amordaçou, ameaçou: nada.
A louca é forte. Sempre dá um jeito de escapar.
Aí você desiste. Entrega-se, chora. Chora como se não houvesse amanhã.
E reza.
Para acabar logo, sem maiores danos.
Pega a caixa de bombons, e come.
Um por um. Vinte.


Dani Altmayer

Um comentário:

  1. É, tem dia que é assim, em que somos assim.
    Vou pegar minha caixa de bombons.
    Amiga, tu és uma escritora dez.

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