terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Das pequenas (imensas) alegrias



Outro o dia o JP perguntou como aguento ser médica e lidar com gente sofrendo, todo tempo. A resposta tá aqui...
Foi só uma frase, mas recebi o melhor pagamento de todos:
Ela  consultou comigo umas três vezes, pedi para repetir uns exames e hoje ela voltou para mostrar. E para me contar uma coisa muito legal.
Nas duas primeiras consultas conversamos bastante, ela me falou da sua vida. Única mulher entre quatro irmãos, depois que a mãe morreu ela "herdou" o irmão mais novo, que está em tratamento para dependência química. Autônoma, fez a escolha de não casar ou ter filhos, e de uma hora para outra viu-se obrigada a dividir seu espaço com esse homem, às custas de sua privacidade e sonhos. Ela tem 58 anos, e um senso de responsabilidade enorme. Reconheceu que estava com raiva da situação, me contou em detalhes como é viver com ele, as consultas com psicólogos, o medo de recaídas, e num tom compreensível de queixa me diz que estruturou toda a sua vida para ser independente e ... agora isso. Sentia-se presa a um destino que não era o dela.
A única coisa que eu disse, depois de validar sua raiva foi:
- A vida não é justa, Clarice.
Ela arregalou os olhos, espantada. Respondeu na hora:
-Nossa, é isso mesmo, a vida não é justa.
Hoje ela retorna me mostrando fotos do irmão, ontem fizeram um rafting com a filha dele, sua sobrinha. É a primeira vez que fala dele com carinho. Está mais bonita, colorida. Me conta que saiu da consulta pensando nessa frase, e tomou a decisão de mudar o jeito de ver as coisas. Levou a frase para o psiquiatra, e para a vida, como um mantra. "Eu precisava ouvir isso". Se matriculou na academia, e me diz com muita doçura que deixou de ser menina com quase sessenta anos. "Pode isso?" Agradece com o olhar cheio de afeto, e me lembra:
- Vocês, que estão aí nessa cadeira, podem fazer toda a diferença com uma palavra. Tua frase, em vez de me deixar chateada, me libertou. A vida não é justa mesmo e está certo assim. Olha que coisa mais linda!
Sua glicose continua alta, mas nessa semana ela começou a se exercitar, vai fazer a dieta, e nós duas optamos por esperar mais um pouco antes de iniciar com medicação. Porque, como ela mesma disse, a mudança vem dela, para ela.
E eu, sentada na minha cadeira- nem sempre tão confortável assim, só posso sorrir, segurar suas mãos e agradecer. De volta.

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