quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Como um beijo mais demorado

                                                                 
                     
               
                                                                                           
                                                                   "Viajar é mudar a roupa da alma."
                                                                                            Mário Quintana

Viajar é pendurar a alma no varal. Para arejar.
Não importa o lugar, pode ser uma viagem de trinta dias à Europa ou um passeio de algumas horas para uma cidade vizinha. Dá para viajar até dentro de Porto Alegre mesmo, porque quem viaja não precisa pegar avião. Basta colocar na mala e na carona um olhar de assombro, de espanto, e está feita a viagem.
Aliás, desde que passei a andar pela cidade de bicicleta, cada passeio é quase uma viagem. Porque viajar é muito isso, esse andar vagaroso, atento, sem pretensão. É fotografar com a câmera, também com os olhos, o cotidiano e o inusitado. Alternados. Num tempo que escorre silencioso, inexorável. Precioso. Quando em viagem, cada minuto importa. Diferente da vida diária, comezinha, onde muitas vezes o deixamos passar despercebido. Onde o desperdiçamos num café distraído, instantâneo e fraco. Num beijo apressado, sem gosto. E fraco. Onde o perdemos, e nos perdemos, em passos descuidados, afobados, na urgência de uma coisa ou outra, de qualquer importância.
O tempo, em viagem, tem outro ritmo. É outro tempo, todo ele importante.
Lembro de umas férias em Itacaré, há um punhado de anos. Pertinho de Ilhéus, na terra mágica da Bahia. Meu filho era pequeno. Encantada com aqueles dias de sol, com a festa do mar, com as trilhas, com as matas, os rios e as cachoeiras, eu quis ficar. Quis nunca mais voltar para o trânsito de Porto Alegre, seus prédios altos, suas calçadas quentes. Queria estar ali, naquela cidade de uma única rua de pedra, com aquela gente bonita e sorridente, jogando conversa fora e comendo peixe grelhado. Quis água de coco e acarajé, para sempre.
O filho, que sempre foi o mais ajuizado de nós dois, me destituiu da ideia. Não sem alguma dor, confesso, mas com bons argumentos. É que tem alguma coisa na minha alma que só fica completamente feliz de biquíni e havaianas. Tem algo em mim que se move como o vento à beira da praia, que gruda na areia, que cheira a maresia e sol.
Mas não... Não se pode ter tudo, me ensinam. Ouvi a voz da razão, do alto de seus dez anos de idade, e retornei para Porto Alegre. Um tanto amuada, em pleno fevereiro escaldante. Aos poucos, como era esperado, me reacostumei ao caos do concreto. No verão seguinte, ainda voltei a Itacaré. ( E voltaria mil vezes, porque viajar é também retornar.)
Um ano depois comprei minha bicicleta. Foi pedalando que descobri aquilo que falei lá no início: dá sim, para viajar sem mudar de cidade, de lugar. Tem muito mais a ver com esse negócio de trocar a roupa da alma mesmo, sábio Quintana. Tem a ver com se permitir esse novo olhar arejado, mais arrastado.
Viajar é buscar um tempo perdido, esquecido, diferente. É viver sem pressa, um tempo mais cuidado.
Feito um café da manhã de hotel, completo e prolongado.

  Dani Altmayer
(Crônica oficina Santa Sede- verão. Tema: viagem.)

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