quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

A dona daquela casa


Gira a chave na fechadura com dificuldade. Afasta do rosto uma teia de aranha, a casa está fechada há muito tempo. Entra pela porta da cozinha, sempre entrou por ali, descalça depois de uma brincadeira no jardim, jogando a mochila de livros na volta da escola, chorando em busca de conforto. Abre as janelas e a luz que vem da rua faz as partículas de poeira dançarem à sua frente, o chão sujo tem marcas de pés e uma barata morta. Olha para o fogão antigo de seis bocas ao lado do fogão a lenha, lembra das panelas todas fervendo ao mesmo tempo, chiando, resfolegando. Exalando cheiros diversos. Feijão, arroz, batata frita, carne assada. Bacon, cebola, torta de maçã. Bolo de chocolate, calda de morango. Brigadeiro de panela, pipoca, doce de pêssego. Limonada azeda, é bom para afinar o sangue, menina. Bolo quente com refrigerante gelado dá dor de barriga. Come mais um pedacinho, está tão magrinha. Um doce para espantar a tristeza. Uma música no rádio de pilha. Fofocas dos vizinhos. Uma colher de azeite, para ajudar na digestão. Bala do coco, feita agora. Suspiros, suspira.
A dona daquela cozinha há muito se fora. De vez em quando, nos sonhos, ainda consegue sentir suas mãos ásperas e ouvir a voz rouca do cigarro de palha que compartilhavam escondidas da mãe, na escada dos fundos de casa, em tantas conversas sem pé nem cabeça, comendo bolinho de chuva, lambuzando as mãos de açúcar, canela, fritura
A dona daquela cozinha e dos sabores que agora se derramam em sua memória, aquela que sabia tudo de si, cada segredo e cada mania sua, sabia tão pouco dela. Será que alguma vez teria amado? Ela, que conhecia todos os temperos, os chás para as dores mais diversas, ela que fazia o suco de uva mais doce do mundo, teria ela conhecido o gosto amargo de um amor de verdade?
A cozinha era o coração daquela casa gelada, o único lugar onde as janelas e as portas estavam sempre abertas, onde o sol fazia a festa das violetas e das bromélias, onde o vento espalhava aromas e pólen, onde a pia brilhava na limpeza caprichada. Ali, na cozinha, ela queria fazer sua cama, como o velho cachorro que dormia o dia inteiro ao lado do fogão a lenha. Não deixavam. 
O restante da casa era escuro, a mãe não suportava a luz e a música, com suas enxaquecas, e era dura, fria de pedra, tinha aquele cheiro de fechado, cheiro de velho, de coisa vencida que se esquece de jogar fora. Como a mãe, depois que o pai partira.
Só na cozinha havia risos. Ali era onde a menina encontrava alimento e pão quentinho, onde ganhava carinho e puxão de orelha, rapadura de doce de leite e leite morno bem docinho, bom para afogar mágoa, minha filha.
A dona daquela cozinha parecia saída de um conto de fadas, como a bruxa do João e Maria às avessas. Ela a alimentara e a engordara aos poucos, em tudo o que não tinha de resto. Mas ela hoje percebia, sabia tão pouco daquela mulher que amara tanto, que estava sempre ali, como era para ser e como achava que tinha que ser, a mulher que era sua garantia.
Há muitos anos fora embora daquele lugar, da despedida só guarda aquele rosto enrugado e o sorriso sem dentes, os olhos marejados de tristeza e orgulho da sua menina que ia para a faculdade. Levava na bolsa uma fatia de bolo, broas de milho e um caderninho com as receitas que anotara com capricho ao longo dos anos. Nunca usara.
Poucas vezes voltou, em busca daqueles cheiros, de um bife mal passado, de um abraço. De um conselho que ela já não podia lhe dar. Havia crescido demais para aquele colo e o seu mundo perdera o alcance daquela cozinha. As visitas foram se espaçando, até que um dia recebeu a notícia. A alma da casa havia morrido, não viu motivos para retornar, por longo tempo. Nunca quis descobrir o sabor de um amor não correspondido. Até hoje não quer. 
A casa era sua agora, mas sua vida era outra.
Não percorre as salas vazias, os quartos, os corredores escuros. Não olha os porta-retratos, nem anda no jardim de grama crescida e flores em desalinho. Não abre nenhum armário, não revira gavetas nem memória. Os cheiros, os gostos e os desgostos, estes estavam todos, há muito, encaixotados.
Apenas deixa-se ficar na cozinha, de olhos fechados por um instante, pensando nela. Nelas. Depois pega a bolsa, tira de dentro o velho caderno de receitas e o deposita sobre a mesa de madeira. Talvez o novo morador tenha mais sorte com ele. Fecha as janelas, uma a uma, e sai por onde entrou. 
Ao trancar a porta da cozinha, a chave agora gira com facilidade.

Dani Altmayer ( escrito em setembro/ 2016)




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