sexta-feira, 10 de junho de 2016

Ostra feliz



Ele achava bonito ser triste, ela ria de tudo.
Ele achava ela boba, ela nem fazia ideia.
Ele acreditava que só as pessoas deprimidas estão certas, que só alguém muito louco ou alienado poderia ser feliz nesse vale de lágrimas.
Ela não via TV, nem lia jornal, para não ter que acreditar nisso.
Ele olhava as notícias e suspirava de razão.
Ela lia poesia e suspirava por ilusão.
Vivia numa bolha, ele dizia. Ela retrucava que excesso de realidade fazia mal à saúde, disso se podia até morrer.
Ninguém sabe como ficaram tanto tempo juntos.
Conheceram-se através de um amigo comum, e eu digo, fuja se algum amigo quiser te apresentar alguém. Erro fatal. Em consideração ao amigo, vocês saem, conversam, passam meses, depois anos insistindo, tentando ver o mesmo que o amigo viu. O elo de ligação, o clic, a compatibilidade que só existia na ficção do amigo, e sempre o que o outro sabe da gente é ficção, como nos livros que ela devorava na mesma velocidade com que ele jogava paciência no computador, e se irritava.
O primeiro encontro foi num bar. Ela falou do Osho e de meditação. Ele falou da economia e (mal) do PT. Ela falou de livros e dúvidas, ele era cheio de certezas. Conversaram por horas, tentando se alcançar. Cada um na sua ilha, e o oceano parecia mesmo amigável para se atravessar.
No dia seguinte ela comprou jornais e a Veja, mas acabou só lendo a entrevista nas páginas amarelas e as críticas dos filmes. O jornal foi para o xixi do cachorro. Ele passou por uma livraria e segurou nas mãos um livro do Saramago. Chegou a sorrir levemente, mas desistiu e levou só cigarros.
Eu os encontrei em um café, na segunda vez que se viram. Foi antes do cinema, ela escolhera um filme francês e ele reclamou das cadeiras e do ar condicionado. Mas o filme era pesado o suficiente para ele gostar, de modo que passaram ao terceiro encontro.
Foram a um motel e transaram. Ninguém viu estrelas ou coisa que o valha, nenhum nirvana, nenhuma luz no fim do túnel. Mas funcionou e quiseram repetir. Dali para dez anos adiante, foi um pulo.
Eles ficaram dez anos juntos, e não foi por causa do sexo morno do início ao fim. Não foi pelas conversas intermináveis, construídas por assuntos em tudo divergentes. Nem pelas viagens que nunca fizeram, a casa que nunca compraram, ou os filhos que não tiveram ou teriam.
Talvez ele precisasse da alegria dela, e ela da melancolia dele. Ou não. No fundo, um queria convencer o outro, e relacionamento é muito isso. Um medindo força com o outro, um contra o outro mais do que um com o outro.
Nesse ringue, a briga foi boa e longa, mas o nocaute foi dele. A tristeza sempre vence a alegria, ainda mais se servida em gotas homeopáticas das pequenas desgraças do dia a dia. Insidiosa, imperceptível, corrosiva, ela entra pelas frestas. Como o frio.
Tempos atrás, eu os vi passar no outro lado da rua, iam os dois de cabeça baixa, ensimesmados. Ela vestida de preto, ele de cinza. Só o cachorrinho, abanando o rabo e alheio, parecia quase contente. Não conversavam, não se olhavam, não davam-se as mãos.
Hoje, soube que terminaram. Parece que ela se sentiu mal, foi parar numa emergência e diagnosticaram ansiedade e depressão. Ele exultou, em silêncio. Sempre dissera que sofrimento era um sinal claro de inteligência.
Só que ela começou uma terapia, e resolveu tomar Prozac. Ele não aceitou. Ela não ligou.
Afinal, só os bobos (e os burros) são felizes.

Dani Altmayer

( Exercício para a oficina de escrita, era para usar figuras retóricas e de linguagem, no mínimo 10 de uma lista extensa. Eu consegui 6!!!!!)

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