sexta-feira, 8 de abril de 2016

O tempo é uma doença sem cura


Esperava chegar sem chamar atenção, por isso dispensara o convite para o jantar. Já passava das 22 horas quando desceu do táxi em frente à casa de eventos. A orquestra tocava uma música muito conhecida dos anos 1960, e ela respirou fundo. Entregou o convite à promoter, que lhe indicou sua mesa. O salão luxuosamente decorado estava na penumbra, e o cheiro de flores lembrava um velório.  Alguns casais dançavam. Cumprimentou Felipe com um beijo no rosto, e ele a ajudou a tirar o casaco, acariciando seus ombros nus.
- Você está linda, Malika.
Estavam sozinhos na mesa, com exceção de um velho que parecia cochilar. Ariadne tomou um gole de espumante, e esforçou-se por sorrir para o acompanhante que falava algo banal sobre o filé servido no jantar. Assim que seus olhos se ajustaram à luz, localizou a mesa do homenageado, o qual estava parcialmente escondido atrás de um arranjo enorme de rosas amarelas. Reconheceu sua mulher, agora uma senhora gorda, ainda muito elegante em seu vestido preto de renda, e o filho mais velho. Os outros deviam estar na pista de dança, mas não conseguia vê-los de onde estava. Por um instante, o idoso se levantou e pareceu olhar em sua direção. Ariadne cobriu o rosto com a mão.
A orquestra tocava New York New York, e muitos casais se levantaram. Ela recusou o convite de Felipe, "ainda não, "segurando com firmeza sua bolsa de lantejoulas.
Do outro lado do salão, o aniversariante sentia seu velho coração palpitar. Suando, colocou o remédio embaixo da língua, e voltou a sentar, tranquilizando com um gesto vago a esposa preocupada. A velha senhora o mantinha sob severa vigilância. 
Ele a vira desde o momento em que Malika pisara no salão, majestosa com sua beleza negra, o vestido prateado em cascata sobre o corpo perfeito de quadris largos, e observara cada passo seu em direção à mesa onde se encontrava agora. A mulher tinha aquela idade indefinida entre os quarenta e os cinquenta, mas não restava dúvida. A semelhança era impressionante. Era como se a estivesse vendo na sua frente, apenas um pouco mais velha e muito mais sofisticada. 
Um pouco tonto, ele se senta novamente. Os oitenta anos lhe haviam deformado o corpo, enrijecido pela artrose e dobrado pelo peso, mas não afetaram sua memória. A casa de varandas largas, a mulher e a menina, sempre agarrada às saias da mãe, o cesto no canto da cozinha. O cheiro, o calor, a sesta. Toda aquela umidade, os corpos nus... A tragédia, o escândalo abafado, a remoção às pressas. Suspira.
A orquestra para de tocar por um instante, e as luzes se acendem. O salão está repleto de políticos, amigos, antigos adversários e muitos desconhecidos que vieram homenagear o velho diplomata. O filho mais velho, que seguira os passos do pai e insistira em organizar a festa de oitenta anos, fala algumas palavras ao microfone. A filha e a neta contam uma história divertida. Há muitos risos, aplausos, o parabéns a você, e a orquestra começa a tocar uma valsa suave. Os convidados rodopiam pelo salão, inclusive Malika e Felipe, todos parecendo um pouco tontos e fora de foco. O ar está pesado, e o perfume das flores começa a ficar mais forte e adocicado com o passar das horas. 
O aniversariante agora conduz a esposa devagar e sem sorrir, esmagado pela emoção inesperada. Faz muito calor no salão. A música para de novo, e é esperado que ele diga algo. Pela segunda vez na vida o diplomata fica sem palavras, e só consegue pronunciar um breve agradecimento ao microfone. Nauseado, caminha sozinho e cambaleante em direção ao banheiro, mas algo o faz se virar. Sente os olhos azuis fixos nele, aqueles olhos incríveis incrustados no mármore preto. " Como?" 
O passado viaja de muito longe, é só o que consegue pensar antes que uma mão fria encoste na sua, e ele precise se apoiar na bengala.
- Você...
E a pequena faca lhe corta a jugular no ponto exato em que um punhal atravessou o pescoço da mãe de Malika, há exatos quarenta e dois anos, dois meses e três dias.

Dani Altmayer
( Exercício para a oficina de escrita )





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