quinta-feira, 28 de maio de 2015

Um par de muletas


 
Por que me odeias se nunca te ajudei? A frase, proferida por um antigo chefe, martelava na cabeça de Júlia ao lembrar do que Fernando dissera ao telefone. Fazia muito sentido, o que não fazia sentido era a explosão de raiva do ex amante.
Júlia é a minha melhor amiga. Ela e Fernando se conheceram no trabalho. Ela é solteira, tem 35 anos. Fernando tem 43, e é casado, como a maioria dos homens nessa idade. Muito mal casado, como a maioria (fala), também.
Ele engenheiro, era sócio minoritário da firma pra a qual ela trabalhava. Ela é arquiteta, e ambos foram designados para um projeto grande. Antipatia à primeira vista, ou assim Júlia me contou. Não concordavam em nada, e viviam discutindo durante o trabalho. Fernando é um homem conservador,  de camisa polo Tommy e dois filhos loiros na melhor escola da cidade. Sua mulher não trabalha desde que as crianças nasceram, e vive nas colunas sociais. Já Júlia voltara de Londres há poucos meses, usando o cabelo curtinho e preto, com uma mecha roxa. Anda sempre de mini saia e botas, inverno e verão. Compra suas roupas em brechós. É budista, não come carne, tem a língua bastante afiada e andou meio mundo.
Um dia, os dois precisaram viajar para a capital, a trabalho. Foi quando rolou. Eu vivia dizendo para ela, "ele está a fim de ti, quem desdenha quer comprar." Ela respondia com um "deusmelivre" suspeito, e falava mal da barriga e das camisas dele.
O caso é que saíram para jantar, beberam duas garrafas de vinho, e acabaram na cama. A transa foi ótima, entenderam-se perfeitamente, contra todas as evidências, e, súbito, acharam mais um monte de coisa em comum. Ou inventaram, que é o que a gente faz nesses casos. Voltaram de Porto Alegre apaixonados.
Passavam o dia trocando mensagens provocantes, isso até às oito horas da noite, de segunda a sexta. Uma vez por semana, com alguma desculpa de visita a obras, se encontravam em um motel na cidade vizinha. O sexo era uma delícia, ele era carinhoso e gentil como poucos. Nos fins de semana, Júlia ficava em casa vendo filmes antigos na TV e alugando meu telefone com as histórias de seu amor proibido. Não saía mais, não ia a festas, nem conhecia ninguém. Estava sempre sozinha. Fernando era muito ciumento e controlador. Em compensação, fazia ela se sentir nas nuvens, em todos os aspectos. Vivia dizendo como ela era especial. Eu diria que ela era idiota, mas nunca disse. Júlia não ouviria mesmo. Como toda apaixonada, era surda. Ele não fazia menção de se separar, embora falasse para a ela que o casamento era só fachada, e que o problema eram os filhos, e tal (como sempre é). Muitas vezes, na solidão de seu sábado à noite, ela chorava, dizia para mim que ia terminar, mas na segunda feira, à vista da primeira mensagem, esquecia.
Ficaram meses e meses assim. Foi na festa de fim de ano da empresa que as coisas começaram a complicar. Ele foi com a esposa, uma mulher ainda jovem e muito elegante, que não saiu do lado dele nem por um minuto. Júlia bebeu demais, e acabou ficando com um estagiário de 20 anos. Fernando, furioso, terminou com ela. Dias depois, na noite de Natal mandou uma mensagem, arrependido. Ela não respondeu. Júlia passou as férias comigo em Garopaba, choramingando, e na volta, pediu demissão. Mudou-se para Porto Alegre, arranjou um emprego, e começou a sair com o professor de meditação.
Eu ainda via Fernando por aqui, em restaurantes e festas, sempre com a mulher e os dois filhos. Parecia feliz e acomodado ( e devia estar), e eu nunca disse a Júlia o que pensava a respeito dele. Um cínico. Passado algum tempo, ele voltou a procurá-la, dizendo estar com saudade, que a vida dele estava uma merda, que o casamento isso, aquilo, e todo aquele papinho conhecido. Que ela, Júlia, era a mulher da vida dele, que era tudo o que ele queria, etc. Acho que se encontraram mais uma vez ou duas. Mas a minha amiga já estava em outra, e despachou o Fernando sem muita pena.
Só que ele não se conformou, e acho que isso é uma característica dos homens. Essa auto estima enorme, ou cara de pau mesmo, que não aceita um não. Que converte o não em sim, se lhe convir. "Você fica se fazendo, mas eu sei que você quer, como eu te quero. Gostosa." Credo.
O que eles não entendem, os homens, é que mulher é muito paciente. Releva, aceita, espera, se desespera, e demora para se dar conta, mas quando decide, é definitivo e irreversível. Ao menos as que conheço são assim. Bobas, mas não para sempre.
Nesse dia do telefonema, Fernando tinha ido a Porto Alegre e esperava encontrá-la. Do nada, mandou uma mensagem, convidando para um café, e Júlia recusou o convite. Estava ocupada, bem feito. Então ele ligou, irritado, e encheu ela de osso. Falou que estava querendo se separar para ficar com ela, mas que, desse jeito, não ia rolar. Porque, pasmem, ela não o ajudava em nada. Falou que se fingia de difícil. Júlia respondeu, simplesmente: "o problema é teu. Aliás, se você entrou nessa sozinho, porque precisaria de alguém para te ajudar a sair, agora?"
Ele desligou na cara dela.
Ajuda! Ajuda a gente dá para mendigo, necessitado, amigo.
Dá para quem a gente quer, e para quem sabe nos querer. E dá mesmo, de coração. Do contrário,  por que me odeias se nunca te ajudei?  Não é de amor que estamos falando aqui. Nunca foi. É de outra coisa, bem diferente. Como a Júlia finalmente percebeu. E o Fernando não.

Dani Altmayer
Exercício para a oficina de escrita.

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