quinta-feira, 4 de junho de 2015

Prefiro dias de chuva


Maria dormiu. Fecho o livro devagar, e fico olhando seu rosto enquanto dorme. Ela gosta que eu leia para ela, diz que a minha voz é macia. Macia! Acho engraçado. Sou sem graça, baixinha e atarracada, meu marido debocha que sou mais forte do que ele. É verdade, lá em casa quem fura parede sou eu.
É por isso sou boa nesse trabalho. Cuido dela há quatro anos, um depois do acidente. Sou eu quem dá banho, veste, limpa, e alimenta a Maria. Maria tem 24 anos, e perdeu os movimentos das pernas, de um dos braços e os dois pais em um acidente de carro.
Ela tem quase a idade da minha filha, e é tão linda, tão gentil, tão calma... tão sorridente, que nem dá para acreditar que sofreu e sofre tanto. Tem dores terríveis ainda, e o fisioterapeuta tem medo que ela perca o pouco movimento do outro braço, também. Eu já disse que não vou deixar isso acontecer, porque é com essa mão que ela pinta. E ela pinta tão lindo, a minha pequena artista, tão colorido que dá vontade de chorar.
Ela me dá vontade de chorar, com aquele cabelo clarinho cor de gemada, e a pele branquinha sem uma marca. Ela tem um corpo pequeno, eu acho bonito, a barriga seca, os seios firmes de moça jovem. Mas quando dou banho nela, e passo a esponja macia por entre as suas pernas flácidas, eu sei que ela não sente nada.
Quando eu lhe faço uma trança, e passo perfume, e a levo para a praça para pegar sol e pintar, ela parece tão novinha e fresca que tenho vontade de chorar.
Tem mais um monte de artista na praça em frente de casa, e cachorros, e um parquinho. Quando o tempo está bom, a gente fica horas ali, olhando as crianças, conversando. Depois eu alcanço os pincéis e ela pinta em amarelo e laranja as folhas secas do outono, e me fala da luz, e faz um biquinho, concentrada para não errar o traço.
Até ele vir. Quando ele chega, é como se o sol se apagasse. O poeta, barbudo e sujo. Ela sorri para o poeta, convidando, e ele vem para perto, diz um verso descarado, e me fala: "pode ir, deixa que eu cuido dela agora." E a Maria reforça, "vai Lu, faz um almoço gostoso para nós, vai, sem cara feia," me dá um beijo na mão, me afasta sem dó.
Eu tenho vontade de gritar.
Volto para casa, fico espiando da janela enquanto pico os legumes. Não confio no poeta de olhos verdes, não confio em olhos verdes. Também não confio em poetas, eles mentem.
Outro dia ela trouxe ele para comer aqui, depois passaram a tarde trancados no quarto. Eu sei o que eles fizeram, ouvi os gemidos. Eu sei que ela não sente nada, não pode sentir, mas os olhinhos dela brilhavam tanto, depois, e ela sorria sem parar. Nojento, ele é nojento, se aproveita. Não tocamos no assunto, mas naquele dia dei banho nela com raiva, esfreguei bem, depois fiquei com um pouco de pena, e fiz uma massagem com óleo. Massagem é bom para não criar ferida na pele.
Eu sei tudo que ela precisa, hora da fisio, das vitaminas, dos remédios, controlo tudo. Faço tudo que é vontade, faço mesmo. Ela merece, não se queixa de nada. Antes eu ficava só de dia, mas a outra cuidadora pediu para sair, agora durmo, e só vou para casa no fim de semana, isso quando a tia dela vem pousar. Se não, nem vou. Meu marido bebe, a filha tá casada, ninguém precisa de mim. Só a Maria.
Já dei uma investigada no tal poeta, pedi para o Joaquim, o pipoqueiro da praça. Ele sabe de tudo, adora a Maria, também. Ele me disse que o cara trabalha em gráfica, é pobre e fuma maconha. Mas que parece honesto. Eu não acredito. Ele quer publicar um livro com sua pornografia. Cada poesia mais abusada, eu não gosto. Pior que a menina está nas nuvens, só fala nele. Também, quem resiste a um verso tonto, nessa idade? Ela diz, "Lu, é a primeira vez que alguém me olha." Eu não falo nada, que falar é fácil. Falar, escrever, tudo palavra, tudo muito bonito. Mas sou eu quem está aqui quando ela grita de noite, quem abraça quando tem pesadelo, quem aplica o emplastro toda vez.
Sou eu quem lê para ela antes de dormir, com a minha voz macia.
Olho para o meu anjo tranquilo, os cabelos loiros espalhados no travesseiro, ela parece a bela adormecida. Dou um beijo em seus lábios. Maria estremece, mas não acorda. Tomou remédio para dormir. Ajeito os lençóis e faço um carinho no seu queixo. Ela se mexe, sonhando, e chama o nome dele, baixinho. Jesus.
Ela não sente nada, eu sei. Eu sinto vontade de chorar.

Dani Altmayer



                                             
                                                                                                               Texto para a oficina de escrita.








(Objetivo do exercício, não alcançado : escrever sobre um protagonista, um antagonista e um terceiro que se movimenta de um para outro lado. Mas, como diz o Pedro, o que importa é a história.)


Um comentário:

  1. Texto grandioso. Posso ver cada personagem, o modo de ser de cada um, os sonhos e as dores.

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