sexta-feira, 8 de maio de 2015

O cachorro



O sol entra pelas frestas da janela sem cortina. É domingo, o pior dos dias, e eu quero dormir até tarde, quero dormir para sempre. Levanto porque preciso dar comida para o cachorro, abrir a porta da área para que ele saia e vá fazer suas porcarias no pequeno pátio de cimento do apartamento térreo. Às vezes acho que decidi ficar com o cachorro só por isso. Para ter um motivo para levantar todas as manhãs. Ele está sujo, precisa de um banho, remédio para pulgas, de uma cama nova, de melhor cuidado. O pátio está sujo, também, preciso chamar uma faxineira nova. A última estava pior do que eu.
Olho para as caixas de papelão na sala, nenhuma parece importante o suficiente para que eu me disponha a abrir. Nem a TV eu desembrulhei ainda. O apartamento é pequeno, e já veio mobiliado com o básico. Um sofá, uma cama, um armário e a cozinha. O básico é feio, me serve bem. O cachorro concorda, arranhando a porta de tela para entrar, abanando o rabo em busca de um afago que não virá. 
O dia está bonito, e eu preciso lavar umas roupas.
Antes faço um café, acendo um cigarro. Voltei a fumar, e a falar com você o tempo todo. Desde que larguei a terapia.
Ontem a mãe esteve aqui, fez compras, cozinhou um feijão que eu não vou comer, e deixou tudo no lugar. Ela me acha muito magra, e disse que seu pai está muito gordo. 
A vovó o viu no supermercado, de longe, ele e a sua tia. Os dois gordos, loiros, de óculos, tão parecidos quanto sempre foram. Às vezes eu acho que a dinda deve estar quase feliz de ter ele só para ela, agora. No fundo sempre foi assim, tudo ele, depois você, nunca entendi uma mulher não querer casar, ter filho, sabe? E eu a odeio mais por isso, por não ter nada e ainda ter me tirado tudo. Não sei de você aí nesse lugar, mas eu aqui não posso perdoar. O que ela fez não tem perdão. Só que, de todos, é o seu pai quem eu menos consigo entender. A minha psicóloga também não entende, por isso parei a terapia. Parei também de tomar o remédio para parar de não sentir, sabe? Não está certo não sentir, como ele faz, como ela faz, como eu fiz.
Todo culpado deve sentir. 
O chato do cachorro quer sair de novo, eu preciso lavar roupa. O dia está quente, e o pátio tem cheiro de cocô. 
Acendo outro cigarro. O apartamento tem cheiro de cigarro. A janela é pequena, com vista para o muro. 
Abro o armário para pegar o sabão que minha mãe comprou ontem. Não acredito que ela não se deu conta, a idiota. Tremendo, tiro a tampa do frasco cor de rosa, e aspiro a memória do sabão. Sinto uma dor aguda queimar meu nariz.
O cheiro é doce, de sabão de glicerina. Cheiro de uma roupa pequena, suave.
Cheirinho de dois anos, da sua vida macia e delicada. Frágil.
Dane-se o dia, foda-se o sol. Desisto de lavar roupa, fecho a porta, a janela, deito na cama desfeita. O cachorro chora, para entrar. E eu choro junto, para sair.

Dani Altmayer

Exercício bem complicado ( para variar) da oficina de escrita. Editado.

(Escrever a partir do final, da mudança de um deles, com economia de linguagem, a história de um casal que teve a filha de dois anos atropelada pela cunhada, (por acidente), e que depois se separa.)

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