quinta-feira, 21 de maio de 2015

A Miséria Humana





Foram anos de pesquisa para o livro, consegui alguns dos melhores nomes da música popular e suas histórias maravilhosas. Faltava a dele.
Fazia tempo que eu queria entrevistá-lo, mas sua agenda repleta de shows não permitia, e meu livro já estava quase indo para a gráfica quando a secretária ligou. "Ele vai estar em Porto Alegre dias 22 e 23."
Marcamos um jantar em uma casa noturna, e, rodeados por belas mulheres, muito espumante e um pouco de pó, ele me contou sua história.
Rick Never. Astro da música popular, lançado ao estrelato com o hit "Me larga", uma música meio boba, mas com um bom refrão e uma batida forte, do tipo que você já sai cantando na primeira vez que ouve.
Bonito, filho de uma família tradicional de São Paulo, cabelos descoloridos, e tatuagens esquisitas, passou a adolescência como vocal em uma banda de rock de garagem, chamada "Manga com Leite". Estudou música nos Estados Unidos, e voltou para uma carreira solo patrocinada pela empresa do tio. Tocava guitarra e cantava em bares, festivais, músicas de sua autoria e um pouco de sertanejo, por obrigação. Isso até compor "Me Larga".
Queridinho do público e da crítica, casado há dez anos com a mesma mulher, dois filhos pequenos. Os Kennedy da música tupiniquim, assim a imprensa os chamava. Muitas vezes capa de revista. Belos, ricos e felizes. Emplacava um sucesso atrás do outro, embora nenhum tão estrondoso quanto "Me larga". Tinha que tocar essa música em todo show, há oito anos. O público o acompanhava, ensandecido.
"Tristeza sem fim,
diz pra mim, diz pra mim..."
Faz o papel de bom moço, mas tem problemas com drogas e uma internação por tentativa de suicídio aos dezesseis anos.
Já estávamos de saída, e ele tinha me contado uma história comum. Quanto à grande inspiração, disse que veio de um coração partido, e  de uma bebedeira em bar.  Nada de mais. Falou do caso com uma modelo negra, Ademires, a filha de um sambista da velha guarda, Ademar Fontes. "Não conta no livro. Ela mora na Espanha, tá casada. Não mexe nisso, foi antes de ficar famoso, quando eu ia tocar no Rio."
Eu comentei com ele que, por coincidência, tinha ouvido no rádio a notícia da morte do Ademar naquela tarde mesmo. Ele empalideceu, ficou todo errado, disse que não sabia. Já estávamos os dois meio altos, ele mais do que eu. Mesmo assim, farejei algo ali, e perguntei se ele ainda os via, se ainda tinham contato. Ele pediu para as moças se levantarem da mesa, e ficamos a sós.
"Vamos fazer o jogo da verdade, então. " Vomitou sua história como quem se livra de um pedaço de carne podre, os olhos esbugalhados pelo pó, a fala enrolada:
Acontece que, quando ele namorava a moça, ele já era casado e tudo, mas ainda não era muito conhecido. Costumavam subir no morro, e ele tocava com o Ademar, mais por brincadeira. O homem estava doente, tinha perdido uma perna por diabete, e gostava de ter companhia. Um dia, mexendo nos escritos espalhados em caixas de papelão, O Rick ( Ricardo) encontrou essa música que falava de amor e tristeza, e pediu para o velho tocar com ele. Estavam só os dois em casa. A música nunca tinha sido gravada, como tantas outras que o velho compunha e largava. Ricardo guardou o rascunho no bolso da calça. Um tempo depois, sua mulher descobriu o caso e ele terminou com a Ademires. Ela foi para a Europa, e nunca mais voltou, abandonando o pai aos cuidados de uma tia. A doença se agravou, o velho teve um derrame e foi internado em um asilo, onde viveu acamado por oito anos.
Desde então, Rick mandava dinheiro para cobrir as contas da internação, sem que ninguém soubesse. De vez em quando ele visitava o sambista, que não o reconhecia. Seu único contato era com a enfermeira particular, que ele mesmo pagava. A filha pouco se importava com o pai doente e alcoólatra. Ricardo ligou para a enfermeira dali mesmo, e confirmou a triste notícia. Inútil dizer que ele me pediu segredo de confessionário. estava muito abalado.
Dias depois, enquanto eu ainda tentava digerir a história, ele me mandou um recado. O tio, dono de uma empreiteira, estava disposto a investir pesado em publicidade para o meu livro, inclusive lançamento a nível internacional e verbas para viagens.
Agora me diz, você que me acompanha desde o início, você que imagina as dificuldades de se viver da escrita nessa merda de país, o que você faria? Os fãs de Rick Never e suas músicas melodiosas, sua família de comercial de margarina, o tio rico, o primo senador, será que todos precisam saber? Será que merecem? A filha, você há de convir, não mereceu. E toda essa idolatria tem um custo, você sabe, sempre tem. Que o preço do sonho seja o silêncio, então.
O prazo está se esgotando, eu preciso entregar tudo para a editora, será lançado em grande estilo na Feira, dentro de trinta dias. Os artistas e seus dons geniais, é esse o nome do livro.  A obra da minha vida. A tela em branco quase machuca meus olhos, mas eu já decidi o que vou fazer. O que qualquer um faria, no meu lugar. Espero que você não me julgue, e mesmo esqueça, se acaso pensar diferente.
Um homem morreu, mas nós estamos vivos. A vida é dos vivos, meu irmão, e no fim, é só isso que importa. Os vivos.
Falta apenas um capítulo, e é a história do sucesso de Rick Never. "Me larga", o capítulo final.
Começo a escrever.
Eu não sei quanto a você, mas tem coisas que ficam melhor sem saber.

Dani Altmayer

Exercício para a Oficina de Escrita. Cada dia mais complicado. O narrador teria que dialogar com o leitor, e buscar uma cumplicidade. Essa foi a parte mais complicada. Não estou certa de ter conseguido fazer muito bem. Mas, como sempre, valeu a tentativa!

Um comentário:

  1. A vida é assim, como vc escreveu. E, de verdade, muita coisa é melhor não saber.
    Amei teu texto.

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