quinta-feira, 30 de abril de 2015

Marina



Quantas concessões cabem num amor?
Era só isso que estava escrito no bilhete. Tão típico dela, a retórica.
Lembrei do dia em que a conheci, na verdade do dia em que a atropelei, como ela gostava de dizer. Eu parei a bicicleta por causa de uma criança no skate, ela não conseguiu frear a dela a tempo, e caiu por cima de mim. Era um domingo ensolarado na beira do rio, e ela pedalava em uma daquelas bicicletas laranjas, de aluguel. A lembrança me faz sorrir, aquela menina de de cabelos vermelhos, o boné cor de rosa, gritando comigo feito uma maluca. O joelho sangrava. Sentamos no banco, e lavei a ferida com água. Foi quando descobri a primeira tatuagem, na canela. Uma fada desbotada. Pensei que ela devia ter uns quinze anos, era o que aparentava, e perguntei. Ela tirou os óculos e estreitou os olhos muito azuis. A resposta veio num riso debochado: "errou por quinze". Não sei se era a magreza que a tornava frágil, a brancura da pele em contraste com o fogo da cabeça desordenada,  as sardas na ponta do nariz arrebitado, mas ela parecia pouco mais que uma criança. E era, de certa forma, do alto dos meus cinquenta anos. Em minutos descobri que era paulista, estava em Porto Alegre trabalhando na Bienal do Mercosul. Era artista plástica e poeta, me explicou muito séria, ainda não tinha nenhum livro publicado, mas escrevia para uma revista de artes e tinha um blog. Falava muito, cantando em voz de passarinho. Marina era seu nome, a que veio do mar, mas não sabia nadar. Segurou a minha mão na sua mão tatuada de estrelas, e olhou fundo nos meus olhos, me deixando um pouco desconcertado. Ela me entregou um poema, rabiscado em papel amassado de pão, que tirou da bolsa. Acendeu um cigarro. "Anota meu telefone aí. Se você entender o poema, me liga". 
Não perguntou nada de mim.
Montou na bicicleta, ainda fumando, e arrumou o cabelo dentro do boné. Na nuca branca, a terceira tatuagem, o símbolo do infinito.
A última, um beija flor, eu descobri um tempo depois. Mas muito tempo antes de entender qualquer coisa.
Quantas concessões acabam com um amor?

Dani Altmayer

Aula de escrita criativa- exercício de apresentação de personagem.

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