terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

O Filho do Açougueiro

Tem coisas que acontecem quando a gente é criança, que a gente nunca esquece.
Não lembro que idade eu tinha, uns sete ou oito anos. Estudava em uma pequena escola particular, na minha pequena cidade natal. Era um colégio tradicional. É, porque ele ainda existe. As árvores que cercam hoje a escola, fomos nós quem plantamos, há pelo menos uns trinta anos. Mais.
Ali fui alfabetizada, muito bem, aliás, e ali passei os primeiros anos de minha infância. Recordo como se fosse hoje, das merendas oferecidas. Gelatina com leite condensado. Pãezinhos redondos, recheados de queijo ou patê. Eram os meus favoritos. Lembro do ambiente familiar, acolhedor. O pátio de areia, os balanços feitos de pneus, o piano da aula de música, coisas assim. Era uma escola feliz, mas era também, com certeza, uma bolha social.
Voltando ao início do texto, explico. Tem coisas que marcam a vida da gente, bem cedo. Não lembro direito os detalhes, mas nunca esqueci um episódio que aconteceu neste colégio. Alguém, uma criança, ou várias, por algum motivo, tinha amarrado seu casaco do uniforme na cintura. E, por algum motivo, isto era algo proibido na escola. Não se podia amarrar o casaco na cintura. De jeito nenhum. Fizeram uma reunião com os alunos. A direção considerava este gesto coisa de "classe social inferior". Dito bem assim,  e com o complemento: "Isso é coisa de filho de açougueiro".  Eu nunca esqueci estas palavras, proferidas pela própria diretora, a quem chamávamos de tia. Fiquei indignada, tão despropositadas me soaram na época, como soam agora. Lembro de ter pensado, "por quê? Qual o problema de ser filho do açougueiro? Qual a diferença, o que tem de errado?" E pensei no açougue onde a mãe costumava comprar, e no dono, cujo nome me foge, o pai deve saber, que nos atendia com a maior gentileza deste mundo. Luis Carlos, lembrei. Pensei no filho dele, também.
Isso foi na década de setenta. Faz tempo, muito tempo. Eu nunca esqueci. Mesmo depois de todo este tempo, ainda fico perplexa ao recordar este absurdo.
Desolada e triste, como fico ao ler os jornais, ao assistir na TV, as notícias recentes. Em pleno ano de 2014, cenas de racismo e violência explícita contra as assim chamadas "minorias".
Por que tanto medo do que é diferente, de quem não combina com a cor, ou o sexo, ou a religião da gente?
Onde foi que esquecemos, que somos pó e ao pó voltaremos? Todos, sem exceção. Sem diferença.
O rico, o pobre, o negro, o branco, o índio, o mulato, o gay e o hetero. O homem, a mulher e a criança. O filho do açougueiro, e a própria diretora.
Como bem disse Bukowski: "Todos nós vamos morrer, que circo! Só isso deveria fazer com que amássemos uns aos outros. Mas não faz."
Se não fosse por mais nada, que fosse apenas por isso. Mas, tanto faz. Ainda não faz.
Acredito, preciso acreditar, que hoje, nas escolas, não se ensina mais preconceito, e sim, o contrário. Respeito. Quero muito acreditar que respeito é algo que possa ser ensinado. A todas as crianças e a todos os jovens. Todos os dias. Insistentemente.
Até o dia em que não precise mais ser ensinado. Finalmente.

Dani Altmayer





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