domingo, 16 de fevereiro de 2014

Detalhes

Foto de Dani Altmayer- Cassino
Ele estava há horas fazendo aquilo. Ela sempre ficava impressionada com a capacidade de concentração dele. Com a habilidade, e principalmente, com a paciência infinita.
O dia estava ventoso, e um pouco frio. Não muito bom para praia, mas resolveram aproveitar para testar a pipa que haviam comprado no outro dia. O filho pequeno estava animadíssimo com a ideia. Ninguém tinha muita prática na arte de empinar pipas, e bastaram alguns minutos para o fio ficar todo enrolado, cheio de nós.
Diante da dificuldade, o menino desistiu do brinquedo, e se pôs a fazer castelos de areia. Haviam esquecido os baldes e pás, e ela o ensinou a fazer aqueles castelos de pingos, que se faz com a areia muito molhada,  escorrendo por entre os dedos, e  que resultam em um estilo meio gótico de arquitetura.
Ela sentou perto, na cadeira de praia, de casaquinho, para tomar seu chimarrão. Perdeu-se a olhar o mar escuro e revolto. O céu estava cheio de nuvens, carregado, mas não parecia que ia chover.
Ele, um pouco afastado do mar e dos dois, sentara no chão, para desenrolar os fios. Não era tarefa fácil, estava tudo muito emaranhado. Meticuloso, era o trabalho perfeito para ele, ela pensou. Gostava de consertar coisas, sempre gostara. Também gostava de ser deixado em paz, quando estava assim compenetrado. Precisava de silêncio para trabalhar, era o que dizia. O filho era igual.
Ela não, não tinha a menor paciência para estas coisas manuais, que exigiam atenção e concentração. Lembrava de quando suas correntes se emaranhavam, na caixinha de jóias. Nunca conseguia desfazer os nós. Sempre acabava pedindo ajuda, ou desistindo. Mesma coisa com os novelos de lã. Achava mais fácil cortar o nó, fazer um remendo, e seguir adiante. Não que levasse muito jeito para o tricô.
Engraçado é que uma pessoa sem paciência precisaria ter o dobro de cuidado. E ela não tinha. Nunca tivera.
Usava, e depois guardava ou jogava as coisas, de qualquer jeito, sem se preocupar com o jeito certo. Resultado, nós, sempre. Ou pontas lascadas, partes perdidas, peças faltando. tampas que não fechavam. Quebra cabeças que não se encaixavam.
De alguma forma, aplicava a lei do menor esforço em quase tudo o que fazia. Seu lema era: "ou é fácil, ou não é para ser. " Desculpas de gente preguiçosa, ou descuidada, ele dizia. Ela até concordava.
Nunca fora boa também para decifrar enigmas, percorrer labirintos, menos ainda para colar com super bonder. Ela sempre acabava colando os dedos. Em algum momento da sua vida, perdera, se é que algum dia tivera, a capacidade de acreditar em consertos e desafios. Terminava deixando para lá. Ao contrário dele.  Ele nunca desistia.
Pensar nisso a deixou um pouco triste. Lembrou de todas aquelas gavetas com etiquetas, nas pastas meticulosamente arrumadas, na cafeteira que já fora consertada pelo menos três vezes. Pensou no empenho que ele fazia para manter tudo em ordem, e funcionando, apesar dela. Por ela. Ela, que se tivesse opção, já teria comprado uma cafeteira nova, há tempos.
Olhou para ele, sentado naquela areia gelada, os olhos e a boca apertados, alheio a tudo. Totalmente absorto pelo esforço de desembaraçar o emaranhado de fios, e já quase conseguindo. A pipa, barata, comprada de um vendedor ambulante, na qual ninguém mais estava interessado. Nem ele.
Olhou para o filho, que brincava quieto, ensimesmado em seu papel de pequeno construtor. Fizera um castelo enorme, e cheio de torres, portinhas e janelas, vãos e pontes, que agora enfeitava com conchas minúsculas e exatas. Uma pequena obra prima, tinha que admitir. Perfeccionista, como o pai.
Olhou para o céu, para as nuvens pesadas, que o sol insistia em atravessar, dando um efeito estranho e surreal. Parecia que Deus queria passar por ali, ela pensou, que nem passa como raios de luz no vitrô de uma igreja. Devido a este filtro, a praia tinha um tom outonal, meio amarelado, de fim de dia. No meio de uma tarde de verão.
Distraiu-se por um momento, perdida em divagações. Teve vontade de rezar, e  fechou os olhos. Quando voltou a olhar, a pipa já estava novamente no ar. Os dois sorriam, orgulhosos. Pai e filho.
Ela suspirou. Gostaria de poder voar, de ser aquela pipa vermelha e amarela, ao sabor da corrente, do vento. Escapar, suavemente, na direção das nuvens. Planar, lá no alto, junto à luz, sobre o mar e as areias douradas. Subir, subir, sumir.
O filho chamou. Riu do seu devaneio, largou o chimarrão e juntou-se a eles.
Já vivia mais no ar do que na terra, fazia tempo. Não tinha como fugir. Ela ia acabar se enroscando toda, caindo, e podia bem se machucar. Era assim que ela era.
E ele, mais uma vez, e com toda sua paciência, acabaria por consertar. Iria desfazer, nó por nó. Fio por fio. Dor por dor. Como sempre fizera. Por ela, e apesar dela. Porque era assim que ele era. Era ele. Ele, quem nunca desistia.
Foto de Dani Altmayer- Cassino

DaniAltmayer

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