quinta-feira, 24 de março de 2016

Restinho de vida


Ele entra com a sacolinha de plástico, tem cheiro forte de cigarro e as bochechas rosadas, suas mãos tremem um pouco enquanto alisam a sacola de supermercado onde coloca a identidade que devolvo. Tem 67 anos, é aposentado e trabalhava na construção civil. Acaba de ser demitido, junto com mais uma "penca". Toma remédio para pressão e dor no joelho, mas não sabe o nome, a receita ficou em casa. Sorri, como quem pede desculpa e assina o atestado com a letra trêmula, "só o primeiro nome, pode ser? "
Pode, sim...
José 
( E agora?)
Quero saber o conteúdo da sacola que segura com cuidado junto ao peito.
- São meus papéis, doutora. Vou à luta - ele me diz, a voz rouca de fumo e (des)esperança. 


Dani Altmayer

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais!
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?
(( Carlos Drummond de Andrade))

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