sexta-feira, 18 de março de 2016

O espelho da Mariana




A Mariana adora uma cena, já falei para a dona Márcia botar no teatro. O grito que ela deu agora há pouco, credo, quase me queimei com a panela do feijão, larguei na pia e corri para o quarto.
Tudo revirado, a guria chorando, de sutiã e shortinho, sentada em cima da pilha de camiseta que eu tinha acabado de passar, pior que o quarto do Beto. comecei a catar as roupas do chão, e sentei do lado dela na cama. A mãe não tem muita paciência, mas eu fico com pena do bichinho. Que gosta de um drama, ah isso gosta mesmo. Pedi para ela me dizer porque tava chorando, ela contou uma história comprida sobre uma manifestação no colégio.
- Tu não viu no jornal, Ozinha?
Eu tinha visto, a Fernanda que sempre vem aqui em casa tava na capa do jornal de ontem com mais umas quantas, mas achei aquilo tudo uma bobagem tão grande que nem dei bola. Parece que tinham combinado de ir hoje todas de short para dizer que não tem regra em cima do corpo delas ou coisa assim. No meu tempo de colégio todo mundo ia de uniforme, e o que mais tinha era regra. Se não tinha regra tinha o chinelo do pai. O pai da Mariana deixa tudo, seu Carlos, nunca vi usar o chinelo ou o cinto. A dona Márcia tenta controlar mais, é tudo na base do grito. Se grito adiantasse eu não tava meio surda desse jeito. Eu não brigo nunca, faço só as vontades, vi nascer os dois, a Mariana e o Betinho. Esse é mais calmo, já tem até namorada e faz estágio com o pai. Não arruma nada na casa, também, folgado.
Bom, a questão era o shortinho que ela queria apoiar, porque achava muito importante e tudo, mas agora parece que tava com vergonha da perna gorda. A Mariana puxou à mãe, mais magrinha em cima e cheinha pra baixo da cintura. Vivia de camiseta larga, calça larga, umas roupas esquisitas que só.
- A culpa é tua, Ozinha, que faz só comida boa.
Eu acho que criança tem que comer mesmo, tá em fase de crescimento, tem que comer feijão, arroz, batata, bolo de chocolate. Mas a culpa não era minha não, da coxa grossa, teve uma época que ela comia muito depois vomitava. Dona Márcia descobriu e levou no médico. Acho que não faz mais, pelo menos eu não vejo. Falo para experimenta com a camiseta do Mickey, a que ela trouxe da Disney. Na praia ela usou, ficou tão bonitinha.
- Não! Tá tudo apertado, horrível, eu sou horrível, muito ridícula.
Ela era linda a menina, com aquelas bochechas, o cabelo de anjo, comprido que nem o da minha vizinha crente. Mas não adianta falar para ela quando tá no drama. Nem bolo quentinho ajuda, fico só olhando, fazendo carinho na cabeça, tenho pena. Acho que essa gurizada inventa moda mesmo, cria muito caso, depois dá nisso. Essa tal de internet é uma praga, tudo vira assunto. Pergunto para ela porque não põe a bermuda comprida que acabei de guardar, ela responde gritando que tem que ser shortinho. Então tá. Veste outro e depois outro, ela tem muita roupa, nenhum serve, eu acho todos lindos, mas nenhum fica bom pra ela, na visão dela, que não é nada boa, ainda mais sem os óculos que ela morre de vergonha de usar. Não acho importante, sabe, essa coisa de ficar se mostrando para mostrar o quê mesmo? Que não tem regra, mas devia ter. Se tivesse regra não tinha problema, era só obedecer e pronto. Devia de ter um daqueles uniformes de antigamente, camisa e saia de prega, ficava muito mais arrumado e tudo. Colégio é lugar sério, pra estudar, queria eu ter podido estudar mais, me confundir menos nas contas. Ela se irrita comigo, mas só um pouco, com a mãe é bem pior. Pede para eu sair do quarto, eu saio porque tenho que terminar o almoço e ela vai se atrasar desse jeito, a van não espera. 
Ela põe uma música horrorosa bem alta e fica lá chorando, acho que tem que voltar pra psicóloga então. Ou fazer o tal curso de teatro. Não é por falta de dizer, mas nem digo mais nada. Coloco a linguiça no feijão, tiro o arroz da panela e frito umas batatas e dois bifes acebolados.

Dani Altmayer
 Exercício para a oficina de escrita- a distância do narrador.  (Menina que quer participar, mas não se sente à vontade no seu corpo.)

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