quinta-feira, 31 de março de 2016

A solidão do sr C.



Para quem, como eu, achava que não era bem assim...
Para muita gente ainda é, bem assim.


Ele tem 86 anos, e é a sua segunda consulta comigo. Tem um bom papo, gosta de conversar e eu gosto dele. Veio mostrar exames, anda preocupado com lapsos de memória. Aposentado, procurador geral da república, tem uma neta médica para quem ele pagou a faculdade particular. Cinco mil reais por mês. Viúvo há mais de vinte anos, teve muitas namoradas e amantes, mas todas em algum ponto se mostraram "ambiciosas", por isso não casou de novo. Agora até pensa nisso, quer uma companheira para a velhice. Na primeira consulta me disse que a filha de sessenta anos está estudando direito, ele não acha certo a essas alturas da vida, mulher tem que fazer companhia para o marido, cuidar da casa. Os exames estão ótimos, ele tem boa saúde e já consultou com o neuro. Está triste porque nenhum dos 4 filhos telefonou para ele na Páscoa. Mora em uma casa na zona sul da cidade, numa área nobre, e faz esculturas no jardim. Ainda dirige. Quando estava saindo para a consulta, chegou a empregada do vizinho, de carro. Ele acha muito estranho uma mulher como ela chegar no trabalho de carro, e ir para a cozinha fazer o almoço. Pergunto porquê. Não acha certo. Pode até estar gastando um dinheiro que não tem, quem sabe não falte para a comida dos netos. Cada um no seu lugar, ele mesmo pagou a faculdade da neta porque podia. Reclama de novo dos próprios filhos, com os olhos azuis cheios de lágrimas, nem um telefonema doutora. Fala que as coisas estão muito mudadas, e que o Brasil está afundando. Quer a Dilma fora. Conta das viagens à Europa que fez com a esposa, adora a Alemanha, e quando me levanto tentando encerrar a consulta, me diz que a culpa do país estar assim é desses imigrantes. "Esses montes de negros que estão chegando, a senhora já viu? "
Aperto sua mão enrugada e me despeço, com pena.
Dele, e da sua triste prisão.

Dani Altmayer


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