sexta-feira, 7 de junho de 2013

Toda a Vida, Menos um Dia

  Ela esperara por ele por muito tempo. Toda a vida, e mais um dia. Estranho dizer isso. Pensar isso. Logo ela, que era meio cética, e não acreditava nesta história de alma gêmea. De felizes para sempre. Amor romântico, estas coisas. Esgotara todas as possibilidades nos inúmeros romances que já lera. Nos tantos fracassos que já vivera. Da vida não esperava muito. Há anos aprendera que certas coisas só são possíveis em livros, filmes e músicas. Na vida real é conta para pagar e problema com filho. Basicamente. Com alguns intervalos para um pouco de diversão. Dizem que a arte imita a vida.A arte enfeita a vida. Põe trilha sonora e pôr do sol, romance em Paris e o Bradley Cooper na sua cama. Não dá nem para comparar. Assim ela pensava. Até ele acontecer.
  Conheceram-se no cinema. Ela tinha mania de ir ao cinema sozinha, em algumas sextas feiras, depois do trabalho. Escolhia a dedo, o filme e o cinema, em geral algum filme austríaco-russo-coisa parecida, em salas fora do circuito de shoppings. Ela detestava shopping centers, e não tinha paciência para estes filmes americanos blockbusters. Só que desta vez, fora diferente. ela decidira assistir ao argentino " O Segredo de Seus Olhos", e acabara no shopping Moinhos, com um saco gigante de pipoca doce, sentada na última fila. Distraída, não o viu até que ele reclamou do barulho da pipoca. Ele achava de última comer pipoca no cinema. Ela olhou para ele, e fez uma careta. Ele riu da careta dela. Ela achou ele interessante. Ele achou ela engraçada. Quando acabou a sessão, meio que naturalmente, eles desceram as escadas juntos, ainda surpresos com o final da película. Foi inevitável que comentassem o desfecho inesperado, e daí a sentarem na cafeteria e engatarem uma conversa, foi um pulo.
 Conversaram por horas, como se já se conhecessem há anos. Não faltou assunto, era fácil falar com ele. Ela descobriu que ele era engenheiro ambiental, morava em São Paulo, e tinha vindo a Porto Alegre como palestrante em um congresso. Estava no cinema para matar o tempo até a hora do vôo. Ele descobriu que ela era ilustradora de livros infantis e amava pipoca doce. Descobriu que tinha pipoca até no cabelo dela. Ele era separado, e tinha uma filha de vinte anos. Ela era separada, e tinha um filho de dez anos. Ela deu uma carona para ele, até o aeroporto. Trocaram telefones e emails. Ela achou esquisito, mas ele não tinha facebook. Falou que não gostava. Ela não falou nada. Despediram-se com um beijo. Ele foi embora. Ela estava apaixonada. Ele também.
 Trocaram emails e telefonemas, mensagens e poemas. Corresponderam-se por cartas, como faziam os namorados de antigamente. Cartas compridas, cheias de detalhes. Ridículas cartas de amor. Ela passava os dias em suspenso, como se não houvesse chão sob seus pés. Flutuava na sua nuvem particular. Ouvia músicas na sua cabeça. Não escutava as amigas, que lhe diziam para ter cuidado, para ir devagar. Que contavam histórias de namoros virtuais, de tantos enganos e desenganos. Era diferente, ela dizia. Ele é real. É de verdade. Ainda guardava seu sorriso e o gosto do seu beijo. Pensava saber dele mais do que de qualquer outra pessoa. Ela sabia que ele tinha medo de escuro, por exemplo. Que não gostava de doces. Que amava cães.Era fã de beisebol. Ele sabia muito dela, também. Sabia que ela tinha um fraco por perfumes. Que colecionava caixas. Que amava chocolate. Que adorava dançar. Compartilhavam pensamentos e afinidades, fraquezas e alegrias. Tinham muitas diferenças. Tinham tanto em comum. O mesmo gosto por livros, pelos mesmos livros. Um jeito parecido de ver a vida, um misto de desconfiança e otimismo. A paixão pelo mar. Adivinhavam-se, um no outro. Refletiam-se, e gostavam do que viam. Tentavam definir uma data para se reencontrarem, estava difícil, sempre uma coisa ou outra. Meses se passaram, um, dois, três. E finalmente, a boa notícia. Ela teria que ir a São Paulo por uma semana, a trabalho. Ele a esperaria no aeroporto.
 No dia da viagem, ela quase perdeu o vôo. Foi uma correria, mas deu tudo certo. Desembarcou do avião com o coração aos pulos. Tinha um pouco de medo de não o reconhecer. Olhou ao redor, e nada. Ninguém parecido. A sala de desembarque ficou vazia, e nada. Talvez ele estivesse atrasado, o trânsito em São Paulo é um caos. Ligou para o celular, caixa postal. Ligou muitas vezes. Esperou duas horas, e foi para o hotel. Checou seu email, nada. Ligou, no dia seguinte, e no outro. Nada, sempre caía na caixa postal. No terceiro dia, uma mulher atendeu o telefone. Ela desligou, imediatamente. No final da semana, voltou para Porto Alegre e pegou uma gripe que a deixou de cama por muitos dias. Há anos não pegava nem resfriado. Uma dor no corpo terrível. Caixas e caixas de lenços de papel depois, decidiu deletar todos os contatos, bloquear emails e retomar sua vida. Recuperar sua saúde. Ganhou um celular novo da editora onde trabalhava, aproveitou para trocar o número. Nenhuma amiga teve coragem de dizer, mas ela sabia. Via nos olhos delas. Fora uma boba. A dor no corpo curou rápido. As outras demoraram mais tempo.
 Anos se passaram. Um dia, enquanto estava, com o filho e o namorado, almoçando na calçada, em um restaurante na Padre Chagas, ela o viu. Com o passar dos meses, a lembrança que tinha dele se desbotara e perdera o foco, como em uma daquelas fotografias antigas mal tiradas. Quase se apagara. Ela pensava que esquecer é um pouco assim. Como quando uma pessoa vai se afastando da gente. No início a imagem ainda é grande, nítida. Depois vai ficando menor, cada vez menor, mais distante, até que vira um pontinho e desaparece. Mesmo assim, não teve dúvida. Ele estava mais velho, com menos cabelo, e mancava de uma perna. Usava uma bengala de apoio. Mas era ele. Tinha certeza. Não estava sozinho. Sentaram-se em uma mesa próxima, ele e a bela mulher que o acompanhava. Então ele a viu. Levantou-se com dificuldade, e veio até ela. Chamou-a suavemente pelo nome. Ela ficou de pé, e olhou para ele. Foi quando percebeu a enorme cicatriz em sua testa. Acidente, ele disse, em resposta à pergunta silenciosa e não formulada. Naquele dia. Traumatismo craniano, fratura exposta na perna. Uma semana em coma. Dois meses de internação. Quase um ano em recuperação. Sinalizando com a cabeça, em direção à mulher que estava na outra mesa, completou: a Ana foi  minha fisioterapeuta.
 Sem saber o que falar, ela sussurrou: sinto muito. Eu também, ele respondeu baixinho. Eu também.

Dani Altmayer

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