Eu estou tendo uma crise de
rinite, daquelas. Alergia ao pólen, foi o que o otorrino me disse. Meu nariz
parece uma batata vermelha. Ou seria um tomate? A caixa de lenços de papel está
quase no fim. Logo hoje, eu penso, logo hoje. O dia está ensolarado, e ventoso.
Ainda faz um pouco de frio para esta época do ano, aqui na praia. O jardim está
lindo, todo em flor. Mas não posso aproveitar, as flores são as culpadas pela
minha alergia. Elas e o vento, desta terra de ventos. Entro em casa, fecho as
janelas e penso em tomar um antialérgico. Não posso. Logo hoje, esta rinite. Ele
deve estar chegando em poucos minutos, talvez em uma hora. O trânsito anda
complicado, mesmo neste fim de mundo. A estrada em obras não ajuda, em nada.
Olho meu reflexo no espelho da
sala. Não poderia estar pior. Bom, poderia. Se começasse a chorar. O que,
provavelmente, iria acontecer, mais tarde. Paciência. Ainda bem que não
coloquei rímel.
Deito no sofá, e, entre um
espirro e outro, quase adormeço, envolta em uma névoa de pensamentos.
Quase um ano se passou. Fazia
calor naquele dia, e tinha chovido mais cedo. Por causa disso, meu cabelo
estava horrível, todo arrepiado. Engraçado o tipo de coisa que a gente lembra.
Eu estava em Porto Alegre para fazer um estágio de trinta dias na área de
oncologia pediátrica. Era meu primeiro dia, e eu cheguei atrasada, para variar.
O grupo de colegas e residentes já estava reunido, fazendo o round, discutindo
os casos clínicos. Tentei ser discreta, mas o chão estava úmido, escorreguei, e
quase caí. Apoiei-me na primeira coisa que vi pela frente, e que, por acaso,
foi o braço dele. Já ia pedir desculpas, quando ele se virou, e me olhou.
Sorriu para mim, entre debochado e curioso, e eu quase caí de novo. Fiquei
vermelha. A meu favor, tenho a dizer que sou do tipo que fica ruborizada
sempre. Por qualquer coisa. Imagino que ele tenha me achado uma completa
idiota. Ele nega, claro.
Rodrigo era residente do último
ano de oncologia geral na Santa Casa. Ele estava passando pela oncologia
pediátrica, também, naquele mês. Cabelos escuros, olhos verdes, um sorriso meio
torto que desmanchava qualquer mau humor. Braços fortes (ainda bem) e
temperamento tranquilo e gentil. Ele gostou de mim, apesar do nosso começo
atrapalhado. E eu gostei dele, desde o começo. Logo estávamos sempre juntos,
dentro e fora do hospital. Ele foi meu guia na capital, que era um caldeirão
fervente naqueles dias. Refugiávamo-nos do calor em shoppings, e cinemas, e em
chopps gelados. Ele me ajudava com os pacientes e prontuários, e acobertava
meus atrasos recorrentes. Contava histórias engraçadas e improváveis para as
crianças, e nos fazia rir, a todos. Tornava mais leve o que era tão pesado. Eu
me apaixonei em bem menos de um dia. Ele, eu não sei quanto tempo levou. Mas,
quando trocamos o primeiro beijo, foi logo avisando que não podia se envolver
com ninguém. Em outubro iria para a Espanha, Barcelona, onde faria uma subespecialização
de três anos. Pensava em se estabelecer por lá. Ele não queria compromisso, e
deixou isso claro. Eu também não, então tudo bem.
Quando acabou o estágio, no fim
daquele mês, voltei para a cidade onde vivia. Eu estava terminando a minha residência
em pediatria, e morava sozinha, em uma pequena casa próxima ao mar. Tinha saído
de minha cidade natal anos antes, para estudar medicina em Rio Grande, e
acabara ficando. Aprendera a gostar da cidade ventosa, e, principalmente, a
amar as dunas da praia do Cassino. Gostava de caminhar em suas vias de areia, e
ver o sol nascer no mar, tendo como companhia apenas os cachorros de rua.
Morava na maior praia do mundo, como gosta de dizer, com muito orgulho, a gente
daquela terra. Já no primeiro final de semana, Rodrigo veio me visitar. No
seguinte, eu fui a Porto Alegre. Logo estabelecemos uma rotina. Sempre que os
plantões permitiam, ou eu ia, ou ele vinha. Enfrentávamos as longas horas de
viagem sem nunca cansar. O amor engolia os quilômetros. O assunto Barcelona não
foi mais mencionado, por um bom tempo. Era um futuro distante. E, por ser
distante, e por ser futuro, ele não existia.
Alguns meses mais tarde, a mãe do
Rodrigo ficou muito doente. Tínhamos planejado uma pequena viagem, juntos. Mas
acabei tendo que passar o mês de férias em Porto Alegre, com eles. Todas as manhãs,
caminhava com ela na Redenção, empurrando sua cadeira de rodas entre as folhas
secas que cobriam o parque. Sentávamo-nos em bancos, sob o sol cálido, e
observávamos os arco-íris que se formavam no chafariz. De vez em quando Rodrigo
se juntava a nós. Seus olhos claros refletiam dor e gratidão. Eu estava lá, e,
desta vez, quem o segurou fui eu. Foi nos meus braços, dentro do meu abraço,
que ele caiu.
Algum tempo depois, Rodrigo
recebeu uma correspondência do hospital em Barcelona, confirmando a bolsa
integral. Era um dia gelado, e estávamos em casa, no Cassino, tomando um vinho,
quando ele me contou, as faces rosadas, e os olhos brilhantes de excitação. Não
consegui falar nada. Apenas virei o rosto em direção ao fogo, que ardia
suavemente, na lareira da pequena sala. Fiquei olhando a chama sem piscar, até
meus olhos arderem e minha visão se borrar. Chorei baixinho, e ele me abraçou
forte. Não dissemos nada. Nós dois sabíamos, desde o início. Outubro. Era dali
a três meses.
É este mês, já. Ele viaja no
próximo fim de semana. Hoje é a nossa despedida. Ou deveria ser. Não sei mais
nada. Levanto do sofá, espio as horas no celular, e olho para o envelope em
cima da mesa. Como pudemos ser tão descuidados? Escondo o envelope na gaveta,
volto a tirar. Ele parece queimar em minhas mãos. Coloco em cima da mesa
novamente. Rodrigo está demorando tanto. Olho mais uma vez no espelho, o nariz
desinchou um pouco, mas os olhos estão vermelhos, e duas olheiras escuras me
conferem o aspecto de um guaxinim. Logo hoje. Meu coração se aperta ao ouvir o
barulho do carro. Em poucos segundos ouço o som de seus passos no cascalho da
entrada, e sua voz, gritando meu nome. Abro a porta, e um enorme buquê de rosas
vermelhas esconde seu sorriso torto. Ele está mais lindo do que nunca.
- O que houve com você, andou
chorando?
- Rinite- respondo, calmamente-
Alergia ao pólen.
Ele pede desculpas pelas flores,
constrangido. Não tem problema, explico, são as flores do jardim que me fazem
espirrar. Elas e este vento. Ele sorri, aliviado, e diz:
-Tenho uma surpresa para você.
Ele me entrega um envelope grande. Dentro, um
bilhete, escrito apenas -“Vem comigo?” E uma passagem aérea, em meu nome,
para janeiro.
Ele me observa com insistência.
A pergunta se repete em seus olhos.
Não consigo responder. Não falo
nada. Olho para o meu envelope em cima da mesa. Sei que preciso mostrar a ele. Não
é uma carta, nem um bilhete. Contém apenas uma palavra. Positivo. Resultado de um teste que fiz
ontem.
Eu, mais uma vez, atrasada.
Dani Altmayer
Lindo texto. É sempre lindo ver o amor vencer.
ResponderExcluirLeitura agradável .