quarta-feira, 19 de junho de 2013

Com Hora Marcada




Eu estou tendo uma crise de rinite, daquelas. Alergia ao pólen, foi o que o otorrino me disse. Meu nariz parece uma batata vermelha. Ou seria um tomate? A caixa de lenços de papel está quase no fim. Logo hoje, eu penso, logo hoje. O dia está ensolarado, e ventoso. Ainda faz um pouco de frio para esta época do ano, aqui na praia. O jardim está lindo, todo em flor. Mas não posso aproveitar, as flores são as culpadas pela minha alergia. Elas e o vento, desta terra de ventos. Entro em casa, fecho as janelas e penso em tomar um antialérgico. Não posso. Logo hoje, esta rinite. Ele deve estar chegando em poucos minutos, talvez em uma hora. O trânsito anda complicado, mesmo neste fim de mundo. A estrada em obras não ajuda, em nada.

Olho meu reflexo no espelho da sala. Não poderia estar pior. Bom, poderia. Se começasse a chorar. O que, provavelmente, iria acontecer, mais tarde. Paciência. Ainda bem que não coloquei rímel.

Deito no sofá, e, entre um espirro e outro, quase adormeço, envolta em uma névoa de pensamentos.

Quase um ano se passou. Fazia calor naquele dia, e tinha chovido mais cedo. Por causa disso, meu cabelo estava horrível, todo arrepiado. Engraçado o tipo de coisa que a gente lembra. Eu estava em Porto Alegre para fazer um estágio de trinta dias na área de oncologia pediátrica. Era meu primeiro dia, e eu cheguei atrasada, para variar. O grupo de colegas e residentes já estava reunido, fazendo o round, discutindo os casos clínicos. Tentei ser discreta, mas o chão estava úmido, escorreguei, e quase caí. Apoiei-me na primeira coisa que vi pela frente, e que, por acaso, foi o braço dele. Já ia pedir desculpas, quando ele se virou, e me olhou. Sorriu para mim, entre debochado e curioso, e eu quase caí de novo. Fiquei vermelha. A meu favor, tenho a dizer que sou do tipo que fica ruborizada sempre. Por qualquer coisa. Imagino que ele tenha me achado uma completa idiota. Ele nega, claro.

Rodrigo era residente do último ano de oncologia geral na Santa Casa. Ele estava passando pela oncologia pediátrica, também, naquele mês. Cabelos escuros, olhos verdes, um sorriso meio torto que desmanchava qualquer mau humor. Braços fortes (ainda bem) e temperamento tranquilo e gentil. Ele gostou de mim, apesar do nosso começo atrapalhado. E eu gostei dele, desde o começo. Logo estávamos sempre juntos, dentro e fora do hospital. Ele foi meu guia na capital, que era um caldeirão fervente naqueles dias. Refugiávamo-nos do calor em shoppings, e cinemas, e em chopps gelados. Ele me ajudava com os pacientes e prontuários, e acobertava meus atrasos recorrentes. Contava histórias engraçadas e improváveis para as crianças, e nos fazia rir, a todos. Tornava mais leve o que era tão pesado. Eu me apaixonei em bem menos de um dia. Ele, eu não sei quanto tempo levou. Mas, quando trocamos o primeiro beijo, foi logo avisando que não podia se envolver com ninguém. Em outubro iria para a Espanha, Barcelona, onde faria uma subespecialização de três anos. Pensava em se estabelecer por lá. Ele não queria compromisso, e deixou isso claro. Eu também não, então tudo bem.

Quando acabou o estágio, no fim daquele mês, voltei para a cidade onde vivia. Eu estava terminando a minha residência em pediatria, e morava sozinha, em uma pequena casa próxima ao mar. Tinha saído de minha cidade natal anos antes, para estudar medicina em Rio Grande, e acabara ficando. Aprendera a gostar da cidade ventosa, e, principalmente, a amar as dunas da praia do Cassino. Gostava de caminhar em suas vias de areia, e ver o sol nascer no mar, tendo como companhia apenas os cachorros de rua. Morava na maior praia do mundo, como gosta de dizer, com muito orgulho, a gente daquela terra. Já no primeiro final de semana, Rodrigo veio me visitar. No seguinte, eu fui a Porto Alegre. Logo estabelecemos uma rotina. Sempre que os plantões permitiam, ou eu ia, ou ele vinha. Enfrentávamos as longas horas de viagem sem nunca cansar. O amor engolia os quilômetros. O assunto Barcelona não foi mais mencionado, por um bom tempo. Era um futuro distante. E, por ser distante, e por ser futuro, ele não existia.

Alguns meses mais tarde, a mãe do Rodrigo ficou muito doente. Tínhamos planejado uma pequena viagem, juntos. Mas acabei tendo que passar o mês de férias em Porto Alegre, com eles. Todas as manhãs, caminhava com ela na Redenção, empurrando sua cadeira de rodas entre as folhas secas que cobriam o parque. Sentávamo-nos em bancos, sob o sol cálido, e observávamos os arco-íris que se formavam no chafariz. De vez em quando Rodrigo se juntava a nós. Seus olhos claros refletiam dor e gratidão. Eu estava lá, e, desta vez, quem o segurou fui eu. Foi nos meus braços, dentro do meu abraço, que ele caiu.

Algum tempo depois, Rodrigo recebeu uma correspondência do hospital em Barcelona, confirmando a bolsa integral. Era um dia gelado, e estávamos em casa, no Cassino, tomando um vinho, quando ele me contou, as faces rosadas, e os olhos brilhantes de excitação. Não consegui falar nada. Apenas virei o rosto em direção ao fogo, que ardia suavemente, na lareira da pequena sala. Fiquei olhando a chama sem piscar, até meus olhos arderem e minha visão se borrar. Chorei baixinho, e ele me abraçou forte. Não dissemos nada. Nós dois sabíamos, desde o início. Outubro. Era dali a três meses.

É este mês, já. Ele viaja no próximo fim de semana. Hoje é a nossa despedida. Ou deveria ser. Não sei mais nada. Levanto do sofá, espio as horas no celular, e olho para o envelope em cima da mesa. Como pudemos ser tão descuidados? Escondo o envelope na gaveta, volto a tirar. Ele parece queimar em minhas mãos. Coloco em cima da mesa novamente. Rodrigo está demorando tanto. Olho mais uma vez no espelho, o nariz desinchou um pouco, mas os olhos estão vermelhos, e duas olheiras escuras me conferem o aspecto de um guaxinim. Logo hoje. Meu coração se aperta ao ouvir o barulho do carro. Em poucos segundos ouço o som de seus passos no cascalho da entrada, e sua voz, gritando meu nome. Abro a porta, e um enorme buquê de rosas vermelhas esconde seu sorriso torto. Ele está mais lindo do que nunca.

- O que houve com você, andou chorando?

- Rinite- respondo, calmamente- Alergia ao pólen.

Ele pede desculpas pelas flores, constrangido. Não tem problema, explico, são as flores do jardim que me fazem espirrar. Elas e este vento. Ele sorri, aliviado, e diz:

-Tenho uma surpresa para você.

 Ele me entrega um envelope grande. Dentro, um bilhete, escrito apenas -“Vem   comigo?”  E uma passagem aérea, em meu nome, para janeiro.

Ele me observa com insistência. A pergunta se repete em seus olhos.

Não consigo responder. Não falo nada. Olho para o meu envelope em cima da mesa. Sei que preciso mostrar a ele. Não é uma carta, nem um bilhete. Contém apenas uma palavra. Positivo. Resultado de um teste que fiz ontem.

Eu, mais uma vez, atrasada.
Dani Altmayer


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