domingo, 7 de abril de 2013

Para não escapar

Não é o rosto, marcado por muitas rugas. Não é o corpo, curvado pelos anos. Não são as mãos, trêmulas, e cheias de manchas. Não é o cabelo, branquinho, bem penteado. Não é o jeito como segura sua bolsa pequena, bem junto a si, como que para não esquecer. Não é a maneira como anda, toda cuidadosa. Não é nada disso que me comove, quando a encontro na lotação.
São os sapatos. Seus sapatos pretos, sem salto, de sola de borracha. Sapatos sem enfeites, sem fivelas, sem cadarços. Sapatos confortáveis. Seguros. Sapatos que destoam do vestido creme, do casaquinho rosado, do batom vermelho em seus lábios. Destoam do pó de arroz, dos brincos de pérolas e do perfume doce. Sapatos quase masculinos.Contrastando com sua feminilidade. Desprovidos de qualquer vaidade. Sapatos funcionais. São seus sapatos que me comovem.
Seus sapatos contam a verdade. Denunciam. Eles não falam, simplesmente. Eles gritam.
Ela senta ao meu lado e me conta sua vida. Veio ao centro para um encontro no salão da igreja. Se reúnem, toda terça feira, no clube de tricô e bordado. Diz que vai só para conversar, seus olhos não permitem o bordado. Seus tremores dificultam o tricô.  Gosta do chá e precisa da companhia. Tem oitenta e tantos anos, mora sozinha, é viúva há muito tempo. Duas filhas casadas, três netos adultos. Todos vivendo suas vidas, que bom, assim é que tem que ser. Nas quintas ela dança. Me fala que adora dançar. Quando o marido era vivo, estavam sempre nos bailes. Ele era pé de valsa, bonitão. Ela também não fazia feio. Agora dança com as amigas, homens são poucos no grupo. Sorri com sua boca vermelha, seus olhos brilham quando me conta isso. Mora sozinha, não quer acompanhante, a filha se preocupa. É final de tarde, ela não pode perder a novela, mas o trânsito não anda. Enquanto isso, ela fala, e fala, e eu ouço. Escuto parcialmente, distraída pelos seus sapatos que gritam. Pelos meus pensamentos, que se infiltram nas palavras dela, na casa dela, na vida dela, nos sapatos dela. Minha imaginação se infiltra na realidade dela. Visualizo sua casa, cheia de toalhinhas de crochê, um ou dois gatos, um prato de sopa rala, e uma solidão consistente. Sinto tristeza por ela. Tristeza que é só minha, e não dela. Porque ela é feliz, me diz, e eu acredito. Está vivendo um tempo emprestado, ela sabe. Fala que muita coisa foi deixada pelo caminho, aqui e ali. Pessoas se foram, os anos se foram, a juventude se foi. Há muito. Mas ela ficou, tem boa saúde, e é grata por isso. Faz festa de aniversário todo ano, com bolo, balão e vela. Comemora cada minuto extra que lhe é concedido. Não quer desistir, me confessa. Quer ver o neto casar, o outro se formar, a filha se livrar do traste do marido, um dia. Quer saber como vai acabar a novela, qual virá no lugar. Quer viajar para a serra, visitar a prima mais nova, tomar aquele vinho bom. Dançar na quinta, conversar na terça, fazer feira no sábado.  Ainda tem muito para ver, reclama um pouco é do corpo, que já não acompanha. Morre de medo de cair. Mas a cabeça? Tá ótima, como aos vinte anos. A gente não envelhece por dentro, na mesma proporção. A gente envelhece pouco, aqui dentro. Há um certo sadismo nisso, percebe a ironia.
Preciso perguntar dos sapatos, não tenho coragem. Pergunto então da solidão. Solidão é psicológico, me responde. É coisa de quem não sabe ser só. De quem não se aguenta. Doença da alma. É como fantasma, só aparece para quem acredita. Ela não acredita em fantasmas, que Deus os tenha. Ela acredita em gente viva, de verdade, que encontra todo dia. Sente saudade do que já não é, para isso tem álbuns, e cabeça. Para lembrar. Gosta de ser a feliz proprietária de muitas lembranças. A maioria boa, tem sorte. Guarda tudo no coração. Mas quem vive de passado é museu. Ela não. Ela vive do dia. Gosta de vida.
Despede-se então, vai desembarcar, chegou a tempo da novela das seis, que bom. Pede para o motorista esperar, desce com cuidado, acena um sorriso da calçada. Entra no prédio com passos firmes, garantidos pelos feios sapatos de borracha. Caminha devagar e com dignidade.
Seus sapatos me comovem. Eles gritam um aviso. Haverá um momento na vida em que se vai precisar de sapatos assim. Isso se tivermos sorte, claro, de chegar até lá. Nem todos tem. Ela sim. São eles que a seguram firme no chão. São seus sapatos que impedem a queda, a fatalidade. São eles que a levam ao centro, que a tiram para dançar. Eles são como grossas raízes de uma árvore anciã. Ela precisa do seu peso deselegante. É ele que ainda lhe confere uma total elegância. O peso dos seus sapatos pretos. São eles que impedem sua alma borboleta de voar antes da hora.
  Dani Altmayer

11 comentários:

  1. Lindas palavras. Com certeza uma linda anciã.
    Parabéns pelo que vc escreveu.

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  2. Obrigada querida, minha leitora fiel! :)

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  3. Dani tua mae,la do ceu deve verter uma lagrima, mas de orgulho, pela sensibilidade da flha.tao verdadeiro o que escreves e a lagrima aqui verto eu....

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  4. Bah, demais. E pensar que já estou atenta nesse detalhe. Já não compro sapatos fashion. Analizo primeiro se são cômodos e seguros. Já caí várias vezes nas nossas maravilhosas calçadas. Adorei teu post. Bj julia guedes

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  5. Oi Julia...obrigada!
    Eu tb tenho o maior cuidado, hehehe...Bjs

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  6. quantas e quantas por esse brasil afora,tambem usam os sapatosconfotaveis,vão as reuniões do croche,e do trico,para terem e ilusão de que não estão sós?lindo o texto,transmite a realidade de quem é velho,porque a chamada melhor idade,não existe.

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  7. Faz algum tempo passei por algo semelhante.A amiguinha de minha neta olhou meus sapatos comprados na Dr school ,"
    -"como é feio teu sapato vo suzy,parece de homem"...Dai em diante passei a chegar na escola da neta, dentro do Tijuca Tenis Clube, com sapatos mais transadinhos. Um beijo minha comadre!Lindo o que escrevestes, é bem assim.suzy

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  8. Conheci tua mãe e teu pai . Conheci você menininha , no Cassino. Não fazia ideia que escrevia , e tão bem , com tanto estilo , simplicidade e sensibilidade à flor da pele ! Grata surpresa , Dani. Vou continuar lendo seu blog , que descobri por mero e feliz acaso. Parabéns !

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