quinta-feira, 4 de abril de 2013

Janaína

Ela sabia, agora. Que nunca ia se curar totalmente. Que era como uma doença crônica, uma diabete, uma hipertensão. Poderia controlar, desde que tomasse os cuidados necessários. Mas cura, mesmo, não havia. Era como ser viciado em drogas, ter uma compulsão alimentar. Era como ser alcóolatra. Conseguia até se imaginar em uma daquelas reuniões,  declarando: "Boa noite, meu nome é Janaína. E eu tenho baixa auto estima. Sou uma baixa auto estima em recuperação."
Após anos de terapia, ela sabia que seu problema estava bem disfarçado. Ela diria, até, bem controlado. Mas não estava curado. Nunca estaria. Tinha recaídas, não tão frequentes, é verdade. Lapsos que aconteciam quando se distraia. Como naquele dia em que ia atravessar a rua, estava olhando na direção certa, e veio um cara na contramão. Ele praticamente a atropelou. Ela pediu mil desculpas, e o homem ainda reclamou, saiu xingando. Depois se deu conta, estava fazendo aquilo de novo. Pedindo desculpas quando não tinha culpa alguma. Ela estava certa, ele estava errado.Teve um tempo em que vivia fazendo isso. Típico de quem sofre desta doença: pedir desculpas por existir. Sintoma básico e sempre presente. Desculpa aí.
Outra coisa que quase nunca conseguia: dizer não quando deveria. Acabava abraçando mil coisas, e causas, com as quais não sentia a menor afinidade. Pela dificuldade em pronunciar esta palavrinha tão sonora, e libertadora. Tão simples. Imagina, dizer não. Não responder a mensagem. Não atender o telefone. Não estar disponível. Não agradar. Que absurdo. Logo ela, tão legal, imagina. Todo mundo ia falar.
Às vezes até conseguia, dizia não. NÃO!  O que não conseguia ainda, de jeito nenhum, era livrar-se da culpa que o não sempre trazia.  Falava e ficava se torturando, dias e horas, e meses, mas "e se"... Como resultado, não poucas vezes, acabava voltando atrás: SIM!  
O que a fazia lembrar da maior dificuldade de todas: mandar tomar naquele lugar! Ah, não, isso nem pensar. Nem com todos os anos de terapia, nem com floral, nem com banda de música. Não combinava com a moça tão educada, tão fina, o que poderiam pensar? Difícil até escrever, falar então, nossa, chegava a suar frio só de cogitar.
Sabe a cena clássica, das histórias em quadrinho, quando um personagem tira o casaco e coloca na poça de lama para o outro passar? Pois a Janaína, antes da terapia, não tirava o casaco, simplesmente, não. Ela se atirava na lama, deitava, de corpo inteiro. Pronto, agora era só passar por cima, quem quisesse. A banda de música, inteira.  Ela era muito altruísta. Mas isso foi antes, agora ela estava bem melhor. Quase sempre. Menos quando se distraía. E tinha um lapso, que é o nome que se dá para a recaída de um doente crônico, em recuperação.
Ela se ama, hoje em dia, quase sempre. A não ser quando alguém a odeia. Aí ela se odeia, junto. Muito solidária com os sentimentos alheios, sempre. Ela é muito legal, a Janaína. Alguém com quem se pode contar. Talvez um pouco sensível a críticas, mas tudo bem. Ela sabe seu valor, geralmente. Não importa que tenha ido procurar lá no "tudo por um real e pouco". Referências, como gosto e religião, não se discute.
Olhando assim, por cima, meio de longe, nem se percebe. Mulher feita, independente, dona do seu nariz. Gente boa pra caramba. Ela sabe, a terapia ajudou a disfarçar. Só se percebe bem de perto. Está sob controle, quase sempre. Menos quando escapa, assim, de repente. Quando se distrai. Aí, mil desculpas. São só alguns lapsos. Coisa que acontece, depois passa. Já nem liga muito. É que ela sabe que tem doença crônica. Que é que nem alcoolismo e diabete. Até dá para controlar. Recupera, mas não cura de verdade. Nunca cura.

Dani Altmayer

Um comentário: