sábado, 19 de maio de 2018

Resgates respiratórios



Plantão bombando, algumas semanas atrás:

Cena 1-Cinco anos de idade, quase bota o consultório abaixo e sai chamando a mãe de idiota porque não pode levar o aviãozinho de plástico que deixo para as crianças se distrairem.

Cena 2- Cinco anos também:
- Que legal! De quem tu ganhou esse aviãozinho, é de quando tu era pequeninha?
- Não, foi um moço que me deu pra vocês brincarem.
( representante de laboratório)
- Bah. Muito legal! Sabe, eu quero ser médico também, pra ganhar um avião assim.

Aí no plantão de hoje, a chuva anunciando o frio e as doenças de inverno se amontoado, chega o Miguel todo ruinzinho, pálido, sem conseguir falar direito.


Hoje o Miguel levou o aviãozinho roxo de plástico, já sem as rodas de pouso- mas com as asas intactas, que é o que importa de verdade no caso de um avião.
Ele passou a manhã aqui, com o brinquedo emprestado, indo e vindo da enfermaria, fazendo resgate de uma crise feia de asma.
Da última nebulização voltou cantando, o rosto recém corado, os olhos escuros brilhando de amor pelo objeto mal acabado.
- Agora vou ter que devolver, tia?
A mãe, muito simples e muito educada diz que outras crianças precisam do avião para a consulta passar mais rápido. (Uma certa amiga querida diria: voando).
O menino me devolve o brinquedo sem pestanejar e sem sorrir, segura firme a luva de balão meio murcho enquanto explico a medicação para fazerem em casa.
Sim, já levaram no pneumo, mas ainda não têm dinheiro pra comprar porque o remédio preventivo é bem caro. Digo que é importante, ele teve uma crise grave hoje, daquelas que tu percebe na sala de espera ainda. (São anos e anos de inverno.) Prescrevo a bombinha para pegarem de graça na farmácia, corticóide, oriento.
Olho para o menino de olhos grandes e blusão puído, pressinto a carência, ela me aperta, ele me abraça. Me dá um beijo de obrigada e vai saindo, calado.
O aviãozinho sem rodas jaz em cima da mesa, inerte. Aquela simplicidade doce me comove, decido rápido e chamo:
- Miguel, o avião quer ir contigo. É teu agora.
Ele abre um sorriso de dente careado e pergunta, contente:
- Posso mesmo levar ele pra casa, tia? É só para mim?
- Só para ti,  Miguel.
O guri sai todo saltitante, falando sem parar enquanto se afasta pelo corredor de mãos dadas com o pai e a mãe. Está quase voando.
Bem melhor do que quando chegou.
E eu também.
Os dois, resgatados.

Dani


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