sábado, 18 de abril de 2015

Na areia


A praia estava cheia de lixo, como sempre fica depois da festa de Iemanjá, e era muito cedo ainda. O sol nascia no horizonte, entre as nuvens, e eu pedalava acompanhada de dois cachorros grandes e velhos que me seguiam desde as dunas.
Ao longe, um grupo de gente vestida de branco se banhava no mar gelado e escuro.
Eu não ia pegar a garrafa, estava muito suja. Mas lembrei de quando você me dizia aquelas bobagens românticas, lá no início, coisas que só dois bobos conseguem entender, que um dia você escreveu uma mensagem e jogou no oceano, que se fosse mesmo para ser, ela ia voltar, eu ia encontrar, e ia ficar tudo bem.
"Mortos não escrevem mensagens", eu disse para mim mesma. "Deixa aí, capaz ainda de pegar uma doença."  Mas não resisti e me abaixei para olhar melhor. Tinha algo ali dentro, um papel. Os cães se afastaram de mim, talvez em busca de uma oferenda que o mar devolvia, aos prantos, e aos quilos.
Coloquei a garrafa na cestinha da bicicleta, e pedalei até os molhes, doendo de curiosidade e medo. E se as coisas funcionassem assim, e fosse mesmo uma mensagem sua, e fosse mais uma vez, tarde demais para tudo ficar bem? Por que você está morto, não está?  E mortos não escrevem mensagens, nem mandam sinais, nem nada dessas besteiras.
Mas sei lá, eu tinha sonhado com você a noite toda, em meio aos batuques que se confundiam com as batidas desconexas do meu coração, e eu tinha chorado muito de madrugada. Fazia tempo que não chorava muito. Vai que a Iemanjá tenha ficado com pena da minha solidão, e tenha me devolvido a garrafa que eu nem sei se um dia você jogou mesmo no mar, ou não. Não sei se o que você falava era coisa de se escrever, ou só coisa de ouvir e esquecer.
Eu não queria quebrar a garrafa, mas de que jeito eu ia saber? Enquanto eu pedalava, ida e volta, passou um filme da gente na minha cabeça. Pensei que, lendo a mensagem, talvez eu pudesse finalmente entender, se fosse uma carta, coisa do tipo.
Depois de tanto tempo, tanta dor.
O tempo tem sempre que passar bastante para a gente conseguir entender, e eu acho isso muito triste, porque depois é depois, é muito tarde.
E se só tivesse três palavras, ali, e elas estivessem na sua letra desenhada, e se o que estava escrito fosse o que você nunca tinha me dito,  aquele "eu te amo" que era o mais importante, e o mais difícil de mostrar, o que eu ia fazer com isso, agora que você está morto?
E se as letras estivessem borradas, e eu não conseguisse ler?
E se fosse apenas um papel encardido, em branco, e você estivesse morto, como está?
Antes de chegar na passarela, num impulso, joguei a garrafa de volta na areia suja. Talvez alguém achasse, e a quebrasse, enfim. Alguém com mais coragem, ou com mais sorte. Alguém com menos amor, e mais vida. Do que eu.
Ou você.

Dani Altmayer

Desafio


2 comentários:

  1. DESAFIO DA GARRAFA NA PRAIA (texto do Tonio)
    (importante a leitura prévia dos textos da Dani e da Alison)
    Encontrei o Pedro cheirando uma folha de papel e com cara de bobo. Com frequência compro dele uns peixinhos e sempre conversamos um pouco. É um cara solitário, trabalhador, pescador de primeira, de espírito prático, Estranhei, portanto, aquela cena, com aquele pedaço de papel na mão e uma garrafa, suja, em cima da mesa. Perguntei se ele tinha bebido, embora eu soubesse que não era dado a esse vício. Respondeu que não, mas que estava se sentindo embriagado pelo perfume e pelo conteúdo daquela carta que tinha nas mãos. Olha aqui, diz, ele, veio dentro da garrafa. E me entregou para que eu a lesse. Passei os olhos rapidamente pelo escrito mas nesse momento minha atenção estava mais na garrafa. Eu já a tinha visto antes. Alguns dias atrás, pedalando pela praia reparei numa mulher à minha frente, também de bicicleta, que a recolhera da areia. Sei que era a mesma pois lembro do rótulo que entrevi quando a ultrapassei, reparando que tinha uma folha dentro. A expressão de seu rosto era de perplexidade e dúvida. Muita angústia. Vi as lágrimas. Não me atrevi a interpelá-la, embora tentado a fazê-lo. Diminui a velocidade para que ela passasse por mim. Seguia absorta e com a testa vincada. Mantive a distância. Num determinado momento parou, retirou a garrafa da cestinha e a arremessou com força e determinação na areia da praia. Continuou sem olhar para trás. Uma onda forte me impediu de recolher aquilo que aguçava a minha curiosidade. A garrafa flutuou para longe levando consigo o mistério não desvendado pela mulher que desaparecia nas dunas. Voltei a ler o texto com mais calma e lembrei de quantas vezes o Pedro me falara de uma moça desconhecida, que caminhava com um vira-lata e que cada vez que acenava para ele fazia seu coração bater mais rápido. Nunca se falavam, mas agora ela escrevera uma carta que, pelos caminhos mais estranhos, lhe chegara ao fundo do coração.

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