domingo, 1 de fevereiro de 2015

Duas canoas






Ela me olha com aqueles olhos enormes, que parecem os de um bicho assustado, um guaxinim. Tem olheiras, e o rímel borrado reforça a imagem que me vem à cabeça.
É sempre assim, depois de um ataque de raiva, o arrependimento e o choro compulsivo que se segue.
No começo funcionava, eu me comovia. Ficava até com tesão, não sou do tipo que não suporta mulher chorando, achava bonitinho.
Hoje eu não aguento nem olhar para ela, a vontade é de sumir. Estou há dezoito anos enredado nessa teia que ajudei a tecer, e não faço nem ideia se saberia sair, mesmo que quisesse.
- Paulo!
- Não é justo, Fabíola, você descarregar em mim.
- Eu sei, meu amor, me perdoa. Você não sabe o que foi o meu dia...
Eu não sei, e nem preciso saber como foi o seu dia. Penso, mas não digo.
Acho engraçado como as pessoas sempre se justificam, ou culpam, algo ou alguém, pelas merdas que elas mesmas cultivam. Porra, ninguém merece ser a lata de lixo do outro. Não interessa, eu também tenho minhas coisas, todo mundo tem, mas dá para separar. Por que será que a Fabi não pode resolver seus problemas sem ter que me meter no meio?
Acho que a gente se ilude muito, põe expectativa demais na relação, deve ser isso, como se fosse possível se salvar agarrando o pobre coitado que está ao seu lado. E que também está se afogando, e você nem sequer consegue perceber.
Penso nisso enquanto ela me abraça sem força, por trás. Não falo nada, fico quieto. Aprendi que silêncio é uma benção, nesses dias de discussões intermináveis. Ando cansado até para ter razão.
Estamos atrasados para a festa de formatura da sobrinha do cunhado da irmã dela. Não sei porque temos que ir. Meu desejo agora era tirar esse terno, pegar uma taça de vinho e voltar para o meu livro. Suspiro e a afasto, um pouco bruscamente.
- Vá retocar a maquiagem, Fabíola.
Ela veste um vestido preto com franjas, que valoriza seu corpo bem definido pela academia diária.
Os amigos vão dizer que está  maravilhosa, sempre dizem. Ela é uma mulher que chama atenção, eu sei. Mas eu não consigo mais achá-la bonita. Acho feia.
Quando ela pergunta "estou bonita", eu minto: "está linda. "A verdade é que mal olho para ela.
Acho que ela pergunta só por perguntar, por costume. Por costume, quase tudo.
- Vamos?
Os olhos azuis e grandes estão vermelhos, mas a maquiagem foi refeita com sucesso. Nem parece que tem olheiras. Ela é boa nisso de disfarçar. Sorri para mim, sem vontade, e eu desvio o rosto.
Ela senta na camionete ao meu lado, reclama do ar condicionado forte, e coloca uma música no mp3. Melhor do que o silêncio desconfortável que certamente se seguiria.
Faz tempo que a gente não termina uma briga na cama, como eu acho que tem que ser. Como era, no início. Faz tempo que a gente não resolve uma discussão com um beijo.
Na real, faz tempo que a gente não resolve, não começa, e não termina nada, com ou sem beijo.
Faz tempo que estacionamos em reticências sem fim.
Sinto algo estranho na minha mão, ao girar o volante. Acendo a luz.
- Olha, Fabi, uma teia de aranha.
A canção que está tocando é triste e suave, e me faz lembrar dos tempos distantes da adolescência.
- Paulo, você está chorando?

Dani Altmayer

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