segunda-feira, 1 de julho de 2013

Salute

No meio de toda a bagunça e confusão, eu achei você. Quero dizer, não exatamente você. Uma foto sua. A que tiramos, no penúltimo dia. Sempre foi a minha favorita. Você e seu sorriso gigante, de corpo inteiro, fazendo covinha. Tão menino, ainda, tão cheio de sonhos. Quando se é jovem, o espaço para sonhar é ilimitado, não é? Depois é que vai apertando. Nesta foto você tinha o quê, uns 20 anos? Lembro que você fazia sempre a mesma pose, cabeça inclinada, a franja meio que caindo sobre seus olhos, deixando uma sombra no seu rosto. Você era um pouco tímido. E muito lindo.
Engraçado eu achar você aqui, agora. No meio dos meus escombros. Há anos não pensava em você. Não que eu tenha esquecido. Nunca esqueci, não poderia. Só te guardei. Arquivei, sabe? Nem lembrava de ter esta foto, ainda. Nunca fui muito organizada mesmo, do tipo que faz faxina e arruma a casa. Do tipo que limpa a vida, que bota pra fora. Sou mais do tipo que vai jogando as coisas em caixas, gavetas, fundos de armário, embaixo do tapete. Não me desfaço de quase nada. Poderia dizer que é apego, mas nem é. É preguiça mesmo, um pouco de procrastinação, sei lá. Eu vou levando.
Por isso esta confusão agora. Bem feito, já devia ter aprendido, há muito tempo. A vida sempre cobra a conta. Não existe almoço grátis. Agora estou eu aqui, quase literalmente soterrada por impressos, fotos, anotações, documentos, listas de supermercado, notas fiscais e comprovantes de débito. Carteiras de vacina, passaportes vencidos, contas pagas, cartas antigas, novelos de lã. Tudo espalhado pela casa, no chão, nos sofás, na mesa da sala, na cama. Só a cozinha escapou. Um verdadeiro tsunami de papéis.
Não pense que fui eu quem fez isso, não, claro que não. Eu sempre deixo tudo como está. Foi ele. Abriu gavetas, derrubou livros,  esparramou a nossa vida pelo chão. Tudo por causa de um papelzinho à toa. Que estava na gaveta do banheiro, afinal. Tão desnecessário, este ataque. Eu achei. Ele parecia um louco, gritando. Não deixou papel sobre papel. Depois saiu, levando uma maleta, a escova de dentes, e batendo a porta. Não consigo nem sentir raiva, só desânimo, e cansaço. A sobrevivente de uma batalha sem vencedores.
Penso em jogar tudo de volta em algum lugar. Numa mala, que boa idéia, e depois sentar em cima para fechar. Esconderia a mala, num canto qualquer, e rezaria para não precisar abrir. Nunca mais. E tomaria um vinho para relaxar. Poderia fingir que nada aconteceu, que está tudo como sempre, na mais perfeita ordem. Poderia, sim. Fingir é a minha especialidade. Faço isso há anos. Ligaria para ele, pediria desculpas, talvez não. Só diria para deixar de ser bobo. E ficaria tudo bem. Sempre fica.
Mas, justo quando estou prestes a fazer isso, dou de cara com você. Ou melhor, com a sua foto. Só pode ser um sinal. Você aparecer, depois de tanto tempo. Oásis no meio do caos. Itália. Sardenha. Parece que foi em outra vida, com outra pessoa. De certa forma, foi em outra vida. E eu era outra pessoa, não era? Era um arremedo de mim mesma, um protótipo. Ou arremedo é o que sou agora? Difícil dizer. Mais de vinte anos se passaram. Eu me perdi de você, num tempo em que era fácil se perder de alguém. O mundo era um gigante. Não era assim, global.  Eu me perdi de você quando tive medo.
- Quer casar comigo?- você perguntou, em italiano. Estávamos no aeroporto, éramos muito, mas muito jovens mesmo, e eu disse não. Agora, não. Voltei para o Brasil, trazendo muitas recordações, algumas fotos e um ursinho fofo, de pelúcia, seu presente de despedida. O Lucca. Que não existe mais, foi comido pelo cachorro, alguns anos depois. As fotos, perdidas, em uma caixa qualquer. As cartas minguaram, com o passar dos anos, assim como a nossa memória. O tempo, ao passar, é sempre outono e inverno. Ele amarela as lembranças, e depois esfria. Sem piedade.
Sua foto não está amarela, no entanto. Incrivelmente, está até bastante nítida. O mar, atrás de você, é da cor de seus olhos, que não consigo ver. Verde esmeralda. A areia, branquinha, o céu, muito azul. Um lindo dia de verão. Nós tínhamos planos. E não tínhamos prazos. Naquela época, você vê, minha vida cabia numa mochila. Meus papéis, todos, em uma carteira.
Olho para a sua foto, e vejo algo há muito perdido. Você sorri para mim, eu sorrio de volta. Olho ao redor, e não consigo mais fingir. Não posso mais fugir. Vai dar um trabalho danado, tanto tempo, e tanto lixo. Toda esta confusão. Abro um vinho, mesmo assim. Vinho italiano.Tim tim.

      Dani Altmayer

2 comentários:

  1. obrigado pela "covinha"!!

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  2. O tempo amarela as lembranças e depois esfria. Verdade. O bom é que o tempo amarela as boas e as más lembranças. Alguns amores perdidos são apagados. Mas, sempre pode haver uma foto na gaveta ou em nosso coração. Adorei teu texto. Você está cada vez melhor.
    Salute!

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