terça-feira, 9 de julho de 2013

Deslocamento

- Para onde der, eu preciso fazer xixi!
- Você tem certeza? Não dá para esperar mais um pouco, até chegar no bar do Chico?
- Não, não dá.
- Ok.
  Ok, a-ham Tá emburrado. Melhor ficar quieta. Eu sei, é que ele tinha toda a viagem planejada, nos mínimos detalhes. Viagem modo de dizer, porque não dá para chamar de viagem uma visita à casa da sogra, logo ali, três horinhas. Procuro, rápido, um sinônimo para viagem, no google. (Tenho esta mania). Deslocamento, bem mais apropriado.
  Então, ele tinha o deslocamento todo organizado. Na véspera, abasteceu o carro, comprou água e chiclete. Ele odeia chiclete, acha feio, comprou para mim. Eu não consigo viajar sem água e chiclete. Então, ele antecipou. Parada só no bar do Chico, para um café. O bar, que fica exatamente no meio do caminho. Tudo calculado para chegar na hora do almoço. Eles almoçam ao meio dia. Em ponto.
   Esqueceu do xixi. Eu fiz antes de sair de casa, como ele pediu. Mas não sei o que acontece em viagens. Deslocamentos. Enfim. É entrar no carro, no avião, no ônibus e pronto. Batata. Vontade de fazer xixi. De trem nunca andei, mas aposto que seria a mesma coisa. O que eu posso fazer, deve ser algum tipo de distúrbio, sei lá. Não tenho culpa. Ele não entende, se irrita. Desta vez, eu até sei, acho que foi por causa da água. Tomei a garrafinha toda, e metade da outra, assim que entrei no carro. Também, com a ressaca do vinho de ontem. Explico isso para ele. Ele resmunga que eu bebi demais. Melhor ficar quieta, mesmo.
  Ele não gosta de mudar planos. Paradas inesperadas. Imprevistos. Coisas que acontecem com todo mundo, mas não com ele. Com ele, os riscos são sempre calculados. Ele é engenheiro.
  Ele faz planilha. Juro. Receita, despesa, extras, poupança. E segue a planilha! SEGUE!
  Ele tem agenda. Para o mês todo. Ele segue a agenda.
  Brinco que ele engoliu um relógio quando era criança. Ou tem sangue inglês, algum antepassado. Nunca se atrasa, nunca corre, a velocidade é sempre constante. E dá certo. Ele é todo cronometrado.
  Ele tem TOC, eu acho. Não diagnosticado, mas tem. Transtorno obssessivo compulsivo. Por que outro motivo ele lavaria pratos, copos e talheres supostamente limpos, sempre, antes de usar? Em casa ao menos. No restaurante ele passa o guardanapo, discretamente. Eu já nem lavo mais a louça, deixo tudo com ele. Detesto trabalho dobrado. Se sabe fazer melhor, que faça, então. Minhas unhas agradecem.
  Falando assim parece que estou criticando. Que eu me irrito com o TOC dele. Por que só pode ser TOC, né? Ou o que, então? Mas não, eu acho fofo. Adoro olhar para o nosso closet, todo organizado. Lembra um arco íris, em degradê. Ele que arruma.Não tenho do que me queixar, quando minhas amigas reclamam dos maridos, que esquecem de baixar a tampa da privada, deixam a toalha molhada em cima da cama, meias espalhadas, e tal. Só me incomoda um pouco a mania de limpeza, esta coisa de tomar banho imediatamente depois, sabe.
   Silêncio absoluto. Sei que ele está furioso, pelo jeito como morde o canto da boca. Aumentou o volume da música. Clássica. Sinto um pouco de culpa, sempre sinto. Por atrapalhar seus planos. Ele é tão cuidadoso com esta questão de horários, como já mencionei. Agora vamos nos atrasar. Ele vai precisar ligar para a mãe. Nada de meio dia, mais. Enfim, acontece.
  Não quero pressionar, mas a vontade de fazer xixi está ficando insuportável.
- Amor!
- Calma, estamos chegando - responde, terminando a volta na quadra e estacionando o carro na frente da nossa casa..
   Ele diz para eu não demorar. Passo a mão nas chaves, e saio correndo. Mas ainda consigo escutar o que ele fala, entredentes: "da próxima vez, lei seca. Nada de água para você."
   Só no bar do Chico, talvez.

Dani Altmayer

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