domingo, 16 de maio de 2021

Narrador não confiável


 

Acordo naquela hora escura em que a noite abraça os sonhos, a madrugada me dói em silêncio, um pé escapa ao cobertor. Penso nas histórias que contamos para viver. Nas que nos contam, também. Mas mais nas que criamos sozinhos.
Somos todos fabuladores, ao fim do dia.
Vez em quando, temos a sorte de coincidir com alguém em capítulos. Dois, três, seis. Mais.
Duramos então o tempo exato de nossa crença, dos subterfúgios que usamos para manter à tona uma verdade inventada, um amor inventado, a trama que não existe fora da nossa imaginação.
Com a afinidade de uma comédia romântica, a amizade da série de TV, o drama do romance épico, o suspense policial, o realismo fantástico, até a superficialidade das redes sociais.
As escolhas do roteiro, os desvios de rota.
Nada é como é, tudo é como somos.
É tudo interpretação. E a narrativa, imprevista e imprevisível. Vilão ou mocinho, a vida nos prega peças. É uma peça sem direito a ensaio.
Somos passageiros, nós personagens. Nós, coadjuvantes nas histórias alheias. Protagonistas da nossa própria, mas nem sempre. Figurantes, quiçá. Ou perdidos no rolê, sem um contexto para chamar de seu.
Carentes de enredo, cenário ou direção. Passíveis de reviravolta. Famintos de finais felizes. Sem garantias. Não há garantia.
Puxo o pé de volta para a coberta, está frio. Friozinho de maio, noite alta.
Ainda falta uma hora para amanhecer, mas o sono e o sonho não voltam mais.


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