sexta-feira, 10 de abril de 2020

Sons de quarentena



De novo o afiador de facas.
É quase meio dia, ele interrompe o silêncio da santa sexta. Lembram do tempo em que se dizia sextou? Lá, antigamente.

Nunca fui muito da sexta- feira, meu dia é o domingo, e segue sendo meu preferido- mesmo agora, quando para tantos, os dias são todos meio domingo ou feriado. Não para mim.

Pela janela o sol se espreguiça, as nuvens intercalam o cinzul do céu de outono, o almoço já está pronto. É a janta de ontem, um risoto de frango, também conhecido como arroz com galinha. Sem peixe hoje, porque não. Fiz outro dia, uma tilápia no forno com farinha de amêndoas, banana, batata crocante. Tenho me puxado, hoje não.

A yoga de manhã cedo foi para poder respirar melhor e sem máscara, enchendo bem o pulmão de ar, barriga inflando feito um balão. Inspira, expira, solta o pensamento. Medita, mulher. Meditação é quimera, utopia e de utopias estamos todos precisados. Não tenho conseguido meditar, mas tento. Tento sempre, quando acordo. Mas só o que consigo mesmo,  é chorar.

Depois vem a limpeza da cozinha, cozinha e banheiro é todo dia, álcool, cloro, antisséptico da veterinária. Esfregar o fogão tão usado. Tem um cara aqui aprendendo a cozinhar também. Lado bom das coisas, sempre tem.

Quinhentos potinhos de água e comida para limpar, a ração da gata esparramada pelo chão- não tem modos a bichana, só para andar: desfila.

Os sacos de lixo, intermináveis, o seco, o orgânico. Cascas de limão, gengibre, cebolas. Raspas e restos. As roupas no varal, roupas da rua, toda vez, os panos secos, molhados, desconheço o verbo passar.

Será que isso vai passar, e quando?

Depois do meio dia ainda tem o plantão, uma metade de doze- seis horas enfiada numa carapuça, máscara, avental, luvas, óculos, medo.

E mais adiante tem o domingo, outro plantão. A vontade era de pegar a estrada rumo sul e voltar no tempo, a outras páscoas, levar o filho para caçar o coelho no Yatch, ganhar um ovo de chocolate diamante negro, o abraço grande do meu pai, do avô dele, de um almoço barulhento em família.

Nunca afiei faca alguma. Todas as minhas facas estão cegas. Surdas, mudas.

Ontem à noite passou um carro aqui na rua, avisando para ficar em casa. Era tarde já, perto das onze. Será que ouviram? E se ouviram, escutaram? Ah, as pessoas, como as facas...

Hoje o afiador nos chama para fora- e é para fora que queremos ir, num assovio triste, feito o do flautista de Hamelin. Seremos nós aqueles ratos? As crianças?

Talvez o afiador seja um serviço essencial, em tempos de pandemia. Assim como passear cachorro e olhar para o céu.

Mas se vai sair, põe a máscara.
(Usa a máscara, lava a mão, tosse no cotovelo, evita aglomeração. Não faz como aquele lá, sem noção. Faz rima, pobre que seja, como a minha, mas pelo amor, não contamina.)

Talvez eu deva voltar para a aula de poesia. Urgente. E afiar minhas facas, afinal. Porque o apito da melancolia, ele volta amanhã. É batata.

 Daniela Altmayer

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