sexta-feira, 27 de março de 2020

Infectados


Nada está sob controle, e não está tudo bem.
Um vírus nos tem, reféns.
Sequestrados pelo medo, embrutecidos por ele.
À flor da pele, de ânimos inflamados, estamos nós e somos sós.
Nada está sob controle, e não está tudo bem.
Nunca precisamos tanto de boas e firmes políticas de saúde, para não morrer.
De vírus, de fome, de frio.
E nunca precisamos tanto de amor, de respeito, de solidariedade.
De nos darmos as mãos, de não fugir da luta, de proteção compartilhada.
Precisamos mais do que nunca, da arte. Para não sufocar.
Do riso, do belo, do afeto.
Escapes que são como as válvulas das máscaras que marcam nossos rostos, embaçam meus óculos, abafam nossa voz.
As lágrimas têm cheiro e gosto de álcool, as mãos estão ressecadas de não poder tocar, é invisível o que nos ameaça, e ao fim do dia só resta a exaustão e o sabor amargo do fel.
A tarde se pinta de vermelho, esplendorosa, por detrás dos vidros, a noite chega sorrateira, quase todo sonho agora tem nome de pesadelo.
A falta de abraço adoece, meu bem.
O amanhã, o sol que não falha em nascer, estes dias azuis em tempos tão sombrios. O deboche, uma triste ironia.
Dói a garganta de não poder gritar, de não poder beijar, de não ter para quem cantar.
Lateja a cabeça, doutora, eu tenho estado de nervos.
Eu também, meu senhor.
Todos nós.

E não está sob controle nem está tudo bem. (Mas o afiador de facas e algumas buzinas estúpidas rompem agora o silêncio deste buraco.)

Daniela Altmayer


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