domingo, 3 de fevereiro de 2019

Vestido azul



Acordei de um sonho, era madrugada ainda e pensei que o sonho daria uma boa crônica. Para não deixar passar, como tantas vezes acontece, peguei o celular, anotei, dormi de novo.
Agora, abro o bloco de notas e duas palavras me olham, confusas e enigmáticas: vestido azul. 
Tenho a vaga lembrança de que sonhei com meu aniversário de dois anos, aniversário do qual me recordo não por uma memória prodigiosa ou algo do tipo, mas porque existem fotos, e existiu um fato. 
Eu caí no bolo, na hora do parabéns a você. 
Talvez venha daí minha fama de estabanada, coisa que fui- e foram alimentando ao longo dos anos, fama de forma alguma injusta, apesar de que hoje, do alto da minha maturidade, tendo a culpar os adultos que não seguraram a pequena eu de vestidinho azul.
Sonhei com o aniversário, com a minha mãe, tenho sonhado muito com ela nos últimos tempos, e acordei no meio da madrugada com uma ideia genial de crônica que envolvia, de forma misteriosa, o vestido azul, duas palavras que foram devidamente anotadas, e que agora não fazem sentido algum enquanto abro a tela do computador e tento escrever. Deveria ter acrescentado mais detalhes, como não o fiz, me deixo levar.
Um ano antes da mãe morrer, ela e o pai reuniram a vida de cada um dos filhos em um livro-álbum, espécie de retrospectiva fotográfica que vai desde o nascimento até o (já) longíquo ano de 2006. Nele estão todas as datas importantes, nascimentos, casamento, festas, batizados, natais, formatura, e tantos outros momentos também importantes, viagens, acampamentos, amizades, brincadeiras no jardim, banhos de chuva e de mangueira, a piscina de plástico, o cachorro chamado Cyborg, o outro de nome Chopp. 
Pego o livro para encontrar o aniversário fatídico, vejo agora que não tem nenhum adulto na mesa do bolo, só crianças, desculpo então os adultos. O bolo era branco, em forma de cisne, ainda lembro das irmãs doceiras que faziam os bolos temáticos, pequenas obras de arte, e os deliciosos docinhos de banana açucarados, enrolados em papel crepom, que se desmanchavam na boca. 
Em uma das fotos estou olhando minhas mãos lambuzadas de merengue, e o vestido azul celeste manchado, minha mãe nunca me vestiu de rosa, cor que detestava, desculpa aí, ministra, os poucos cabelos loiros presos em duas maria-chiquinhas, a cara de espanto, os convidados sorrindo. Tenho a impressão de reviver aquele instante, hoje.
Escrevo agora, as palavras percorrem a tela, continuo não sabendo porque achei que poderia interessar meu vestido azul e uma festa de aniversário no século passado, tampouco a queda no bolo, que pode ter sido engraçada, só isso, ou talvez tenha determinado meu futuro, quem saberá, o mais provável é que nada faça mesmo muito sentido nessa crônica- e na vida, a não ser contar a beleza de se ter um registro feito pelos olhos amorosos daqueles que nos botaram no mundo. Daqueles que seguraram nossas mãos, amparando os primeiros passos, e que, se não impediram os tombos e as lambanças, sempre estiveram ali para socorrer, para limpar, para ajudar a levantar. 
Os sonhos quase sempre se evaporam ao amanhecer.
Mas algumas coisas conseguimos reter no bloco de notas da memória- ou no álbum da vida: um vestido azul, algumas saudades, a certeza do afeto, o imenso privilégio de uma infância bem cuidada.

Daniela Altmayer

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