domingo, 13 de janeiro de 2019

Maria e João


As coxas douradas, o biquini preto, o chapéu de palha, uma bolsa de pano a tiracolo, os cabelos cacheados presos numa bandana, os óculos espelhados de grife, o cheiro do bronzeador de coco e maresia, o sorriso de dentes brancos, alinhados com perfeição num rosto comum, o pedido incomum por um picolé de tangerina, faz tempo que não fabricam mais, de goiaba, também não, limão, pode ser? podia, não tinha troco para a nota de cem, as unhas pintadas de azul claro, as mãos esguias, eu espero, vai demorar um pouco, não faz mal, estavacaminhando à toa mesmo, a praia de domingo muito lotada, posso caminhar com você? podia, aproveitar a sombra do guarda-sol, o picolé derretendo sob o céu de janeiro, a profusão de corpos suados, molhados, expostos, o verão é uma estação democrática, não acha, não repara, só trabalha. O mar está tão bonito, você já deve estar acostumado, é coisa de todo dia, mora perto, é perto sim, quatro quadras, sozinho? sozinho.
Quer saber o nome, João, diz o seu, é Maria. Da Graça. Combina com você, obrigada. João e Maria, detesta essa história, os dois riem, um menino compra um picolé de chocolate, duas notas de dois e uma moeda, a maré sobe um pouco, desvia o carrinho de uma onda, a areia fica pesada, tem os braços fortes, faz tempo que vende sorvete? não muito, só no verão, trabalha no centro, estuda de noite, faz o quê, curso técnico, você? espera um pouco, vou no mar, tira os óculos, o chapéu, deixa tudo com ele, mergulha e volta pingando, tem os olhos puxados, de gata, fica mais bonita sem óculos, pega um spray na bolsa, espirra nos cabelos, tem um perfume doce, procura o óleo, esfrega nas pernas, barriga, passa nas minhas costas? tem as costas macias, os pelos dourados, os ombros já estão vermelhos, melhor ficar na sombra, ainda não tem troco, não precisa pagar o sorvete, precisa sim, não tem pressa, vamos andando, está sozinha. Tem namorado? não aqui, ela ri, acende um cigarro, você fuma, não fumo, não gosto, apaga o cigarro na areia, guarda a bagana na carteira, é surfista? tem corpo, já foi, não tem mais tempo, tira o boné, quero ver seu cabelo, eu sabia, tem cara de surfista, olha só, não precisa pagar, de verdade, faz questão, a bolsa está pesada, é porque tem um livro dentro, gosta de ler, também, acha estranho? não, acha legal, o quê, biografias, coisas de história, nenhum romance, nunca, detesta romances. Tem namorada? não aqui, debocha, em casa, então? mora sozinho, já disse, onde fica? na rua do mercado, terceira casinha, a de porta azul. Tem cachorro? não responde, uma menina de maiô de unicórnio pede um picolé de uva, as crianças rodeiam o carrinho, vende vários, quer uma água de coco, aproveita para trocar o dinheiro no quiosque, coloca a saída de praia, um vestido branco, transparente, solta o cabelo comprido, tem uma tatuagem no punho, fé ou algo parecido, não consegue ler direito, é pequena, não tinha visto antes, os braços são magros, bronzeados, já vai? tem que ir, combinou com a amiga, volta amanhã, talvez, com certeza, se não chover, legal, bom trabalho, João, fica até tarde? mais um pouco, só, até esvaziar o carrinho, vende todos? não sempre. Tá, então, coloca o chapéu, Maria da Graça, põe os chinelos, a areia está muito quente a essa hora, uma senhora interrompe, pede um sorvete de casquinha, não tem mais, tem poucos agora, não pode esperar, não quer? adoraria, tem que ir, já está atrasada, a amiga mandou mensagem, se despedem, muito prazer, ah, sim, tem cachorro, é grande, mas é mansinho, não morde.
Ela sorri e se afasta, mexendo no celular enquanto ele vende o último picolé de morango, não vai esquecer, não mesmo, a terceira casa depois do mercado, a de porta azul. Com cachorro.


Daniela Altmayer

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