sábado, 31 de março de 2018

Ninguém




Ela tem a minha idade, é formada em direito, trabalha na prefeitura e tem um filho um pouco mais velho do que o meu.
Ele está preso há 3 anos, por roubo de celular. Ela veio pegar a receita do antidepressivo porque está difícil conseguir hora com o psiquiatra. Conversamos um pouco, ela diz que visita o menino toda semana, toda semana ela pensa: ainda está vivo. Ele já teve tuberculose, agora está usando drogas, "porque tem de tudo lá, doutora- à vontade". Todas as drogas, todo tipo de doença, chefes de quadrilha, uso livre de celular, um cheiro de carne nauseabundo. " Eles podem tudo. a gente não." Me conta das revistas íntimas, da humilhação pela qual passam as mulheres e as mães dos detentos, "somos culpadas também, somos piores que eles, para aqueles pessoas." Ela diz que está corrompida, chega atrasada no trabalho, não tem mais esperança. Se ele não morrer lá dentro, morre quando sair.
Pergunto pelo pai do garoto, só foi pai para pagar a pensão, nunca participou da vida dele. Fala com resignação e tristeza, um resto de dignidade. Pede uma receita de vitaminas porque não come mais carne, não consegue. Sai do consultório e um vento frio entra pela janela aberta, quebrando o mormaço da tarde. Ela vai embora e me deixa com um pouco da sua dor, uma dor que também é minha, é sempre nossa, quando chega tão perto assim.
Eu penso como muitas vezes faço, durante e depois das consultas: e se fosse comigo? Com meu filho, meu amigo, meu sobrinho?
Cadeia não devia ser um depósito de vidas sem valor, menos ainda escola de crime.
Alguém poderia dizer, eu mesma um dia já falei: é só não fazer nada errado, e pronto. Mas eu sei, e tenho aprendido, que nada nesse mundo é simples assim. As coisas mudam a todo instante. Injustiças acontecem o tempo todo, dentro daquilo que chamamos justiça.
Todas as histórias são possíveis. E por serem possíveis, não há zona de conforto. Não tem como haver.
O Brasil é o terceiro país no mundo que mais prende, mas com certeza é um dos que menos aprende.
Ninguém está livre.

Daniela Altmayer


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